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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

As Ladainhas: A Procissão: Coalização:Tornemos ao Arco: A Bruxa de Gaia

O espetáculo era verdadeiramente grandioso e magnífico, e digno dos pincéis de Cláudio Coelho ou de outro grande eternizador das fastuosas grandezas do culto.

À porta do bispo os archeiros, tendo tomado a dianteira do cortejo, formavam duas alas cerradas que se estendiam numa curva quase diagonal, e iam tocar nos degraus do adro da Sé. O prelado, em toda a altivez e suntuosa grandeza da púrpura, a frente alta, a grande estatura direita, era rodeado de seus clérigos e ovençais, de um imenso acompanhamento secular e eclesiástico. Da igreja, ao som estridente e solene do órgão, saía o majestoso clamor da antífona: Ecce sacerdos magnus secundum ordinem Melchisedech. E o cabido, presidido pelo deão com o bento hissope na destra, desfilava em longa e grave coluna, com seus capelos roxos e mantos pretos, arrastando as longas caudas pelas lajes sepulcrais do adro.

O deão chegava ao pé do bispo, e inclinava-se a beijar-lhe o anel antes de lhe entregar o hissope, quando pela pequena rua que vem dos antigos paços do conselho desembocar defronte da porta principal da Sé um tropel imenso de passos, de gritos, de tinir de armas, um estupendo charivari de caldeiras e de toda a sorte de vasos de arame, rebentou descompassadamente no pequeno largo... E logo um golpe de muitos centenares de homens do povo, de regateiras da Foz, de padeiras de Avintes e de Valongo, correndo e vozeando com estupenda grita:

_ Justiça, justiça Del-rei D. Pedro!

_ O nosso foral!... Queremos o nosso foral! A sentença de São Jorge!

_ Aninhas, Aninhas!

_ Morra Pêro Cão!

Todos estes brados que aqui explicamos distintamente, soavam confusos no ar, e tão implicados como, se é licita a expressão, as emaranhadas madeixas de uma trança de fúria – como as diversas línguas de uma mesma flama que só se farpam na extremidade, mas sobem em um corpo aos ares.

Os cônegos recuaram em desordem: o deão largou o hissope bento no meio do chão... Quis erguer-se... Caiu de joelhos diante do bispo, e ficou, como um deus egípcio, sentado sobre os próprios talares; mas, em vez de colocar gravemente as mãos nos joelhos, como o seu tipo hieroglífico, ficaram-lhe esbandalhadas para trás e pendentes. Os archeiros desordenadamente romperam a forma; tal houve que largou a ascuma e fugiu para o sagrado da Sé...

O bispo ficou impassível, ereto, grande e quieto, no meio do alvoroto e desmaio geral!

A torrente da plebe enfurecida parou, involuntariamente respeitosa, diante daquela impassibilidade.

Fez-se um grande silêncio.

Os populares olharam uns para os outros inquietos: a vista direita e segura do bispo fascinava-os. Foi um alívio verem chegar os seus magistrados que, impelidos pela multidão, não tinham enfim remédio senão aparecer na presença do bispo.

_ Mestre Martim Rodrigues, mestre Martim Rodrigues! O nosso juiz, o nosso juiz!

_ Mestre Martim Rodrigues que fale por nós!

Os doutos edis portugalenses desbarretados, coçando a cabeça, metendo as mãos pelo barrete e o barrete pelas mangas... e, olho no povo, olho no bispo, olho no chão, não sabiam o que fazer de si, muito menos o que dizer.

Estavam no que a moderna língua de hoje diz, “uma falsa posição”; em que se não pode estar muito tempo, e de que o mais acanhado e lerdo procura sair quanto antes e seja como for, porque enfim não é posição em que se esteja.

Os padres conscritos caminhavam para o prelado em passo desmanchado e lento: e, sem saber mais nem melhor que fazer, ajoelharam... O bispo estendeu tranqüilamente a mão e ofereceu o anel ao devoto ósculo municipal.

Todavia os órgãos legítimos da opinião popular não davam o mais leve ronquido... E não era falta de fole! Assaz lhe tinha assoprado às orelhas o bradar do povo justamente enfurecido.

Um sorriso quase perceptível mas de expressão imensa... Vislumbrou rapidamente nas feições do altivo príncipe da igreja.

_ Erguei-vos! – disse o bispo com afetada complacência, - erguei-vos, senhores juízes. O que quer, o que deseja esta boa gente em cujo nome me parece que vindes?

_ Trazidos... Obrigados por eles, senhor bispo – acudiu ansiosamente Martim Rodrigues, e repetiu Gil Eanes com não menos ânsia.

_ Bem, bem: para falardes por eles e procurar por suas coisas, vos nomeou e elegeu este bom povo. É vossa obrigação faze-lo. Praz-me de os ver guardar e usar tão bom termo. O que se pretende de nós, e que quer o nosso povo, senhor juiz?

_ Saberá vossa ilustre reverência, que este povo está... Está amotinado...

_ Não vejo eu isso, homem. Antes bem pacíficos e quedos os vejo, aguardando que ponhais vós por eles seu pleito, e exponhais o agravo... se é que o tem...

_ Senhor, começou isto com a má vontade que há na terra contra um oficial vosso, senhor...

_ Pêro Cão? Sei que agravou o povo. Há de ser castigado: merece-o. Tem feito demasias na portagem, e abusado de nossa autoridade, que é toda paternall, e menos de senhor para vassalos, que de pastor que somos e queremos ser para nossas ovelhas. Justiça será feita no vilão.

_ Viva o nosso bispo! Gritou uma voz.

_ Viva o nosso bispo! Responderam umas cem vozes talvez.

Mas um sussurro duvidoso e dubitativo fez eco a esta primeira expressão de reviramento... Da reação que, nas grandes crises, tantas vezes desanda de repente do clímax da irritação popular para os mais opostos e inesperáveis sentimentos.

O bispo continuou:

_ Disto ficai certos; e segurai-o. Em nosso nome, a esta boa gente. Mas, vedes, o nosso espera: e temos de ir longe, como sabeis, com as ladainhas à igreja do evangelista. Voltai pela sesta, e falaremos. – Vamos, meus reverendos irmãos. Porteiro da maça, guiai o préstito. Archeiros, fazei o vosso ofício.

E o porteiro levantou a maça, e marchou; os archeiros, fazei o vosso ofício.

E o porteiro levantou a maça, e marchou; os archeiros, já mais compostos, arredaram com tento a multidão, que cedeu sem violência: e o bispo precedido do seu cabido caminhou a passo grave mas seguro para a porta da catedral. Os sinos tangeram, o órgão levantou a sua voz solene... E as abobadas antigas do vasto templo ecoaram de novo com o – Ecce sacerdos magnus secundum ordinem Melchisedech.

XVI

As Ladainhas

E o povo e a sua tremenda fúria e o seu poder irresistível e formidável?

Parecia ter-se evaporado tudo com a primeira e terrível explosão de brados em que o tumulto se declarara. Ouvia-se apenas um murmurar disperso aqui e ali por alguns grupos. No geral, uns pasmavam sem dizer nada, outros destomavam pelas portas laterais para entrar na Sé; o maior número estava imóvel, sem ação. Caíra naquele estado paralítico que sucede às grandes irritações. Não se podia dizer dissipado, mas era quebrado o tumulto.

De repente uma voz aguda e estridente rompeu da multidão:

_ Aninhas, Aninhas!

Um rufar de caldeiras e de arames de toda aa sorte, tim,tim,tim, respondeu com infernal dissonância àquele grito agudo: a assuada recobrou toda a vida febril e temulenta de sua primeira nascença

Brados, uivos, imprecações, clamores e gritos espantosos deram fé que o braço popular, entorpecido um momento pelo magnetismo da autoridade e sangue frio do bispo, tornava a levantar-se mais irritado e tremendo.

Tudo isso foi obra de um instante. E o bispo, alerta sempre e sem perder a compostura do ânimo e do corpo, viu o perigo em que estava, apressou o passo, deu ordens rapidamente aos seus, e entrou na igreja. Ao mesmo tempo as portas da sé e as do paço se fecharam sobre o povo.

Mestre Martim Rodrigues e seus dignos colegas tinham entrado com o préstito na igreja.

O povo ficou só, único senhor e possuidor do pequeno largo da Sé, e de o estrurgir com seus clamores e berreiros à vontade.

O povo gritava e bradava, e fazia uma bulha insuportável: o motim renascia e recrudescia... de repente a janela de alta empena e vidros multicores que está sobre a porta principal, e olha, como em todas as catedrais antigas, para o ocidente, abriu-se de par em par: Martim Rodrigues e o seu colega, enfiados, trêmulos, os olhos esgazeados, apareceram no grande balcão de donde se publicavam e liam ao povo as bulas, indulgências, excomunhões e todos os grandes atos do poder eclesiástico e civil que na nossa terra do Porto era um quase e indistinto, como todos sabem.

_ Silêncio! – bradou uma voz sobre todas as outras dentre a multidão. – Silêncio! Ouçamos o que diz o nosso juiz.

Fez-se profundo silêncio nas turbas.

Gil Eanes deu sinal que ia falar. O povo assustou-se e tremeu com a ameaça daquela avalancha de palavras que o esperava. O nobre orador, segundo hoje se chama ao maior vilão ruim e mais ludroso calça de couro que se atreve a abrir a boca diante de gente, o nobre orador disse:

_ Meus bons amigos e honrados compatriotas...

_ Bom, bom! Isso é outro modo de falar.

_ Ah, ah! Já nos tratam de honrados...

_ Silêncio! Ouçam.

Tornou-se a fazer grande silêncio.

_ Ouvi-me, bom povo, e sabereis grandes coisas, amigos. O nosso venerável prelado e pastor, o nosso senhor e bispo...

_ Barrabás, Barrabás!

_ Não sou, meus amigos, não sou. Escutai-me.

_ Pedras ao traidor! Acabemos com o Judas que nos vendeu!

_ Ouvi-me, ouvi-me, por Deus que está no céu, e ficareis satisfeitos.

_ Ouçam, ouçam.

_ O nosso bispo e o nosso cabido tem de ir hoje a São Marcos de além do douro.

_ Não, não enquanto justiça não for feita.

_ Não: São Marcos é pelo povo.

_ Grande santo São Marcos evangelista! Nós estamos pela lei de Deus; queremos que se cumpra a lei de Deus. E justiça Del-rei D. Pedro nos valha!... Que antes São Marcos fique sem festa nem procissão, do que lha façam em pecado mortal esses iscariotes.

_ Justiça tereis, boa gente: ouvide. Pêro Cão!

_ Enforcado Pêro cão!

_ Morra, Pêro cão!

_ Morra, morra!

_ Não morra: queremos come-lo vivo.

_ Vivo não; é muito duro.

_ Assado e de molho de vilão, o vilão!... Como el-rei comeu o coellho...

_ O coelho que lhe matou a amiga.

_ Dobra a língua, bruto: a mulher.

_ Pois a mulher: seja. Contanto que o cão vá pelo caminho do coelho.

_ O cão atrás do coelho é razão natural.

_ Ah! Ah! Ah! Ah!

_ Tem razão, bem dito. Venha o cão, morra o cão!

_ Morra Pêro Cão!

_ Morra, morra.

O aturdido orador do alto da sua tribuna emparvecia de susto e confusão. Martim Rodrigues, que não estava muito melhor, mas que, porquanto não era tão papelão como ele, não perdia tão completamente a tramontana, Martim Rodrigues deu-lhe ânimo o excesso do medo, empurrou da varanda o estonteado colega, e bradou agitado da mesma agitação que o rodeava:

_ Seja feito como quereis. Pêro Cão é um enredador, um tredor. O nosso bom prelado o manda entregar nas vossas mãos para que façais nele segundo a vossa vontade.

_ Viva o nosso bispo, e morra Pêro Cão!

Outra vez se abrandava o tumulto; e outra vez surdiu, dentre as turbas quase aquietadas, a mesma voz estridente e magnética:

_ E Aninhas, Aninhas!

Começava-se a irritar de novo a sanha popular; Martim Rodrigues perdeu de novo a cabeça. Como homem que não sabe o que há de responder, e que vê todavia a necessidade de um resposta peremptória, olhava para todos os lados, engolia em seco, fazia gesto de quem ia falar... Mas ficava.

Em que pararia esta pasmosa cena do povo portuense com os seus magistrados, não é possível imagina-lo: grandes desgraças iam acontecer talvez se, ao pé das rotundas e apatetadas figuras de Martim Rodrigues e de seu colega não fosse visto aparecer ao mesmo balcão o homem mais popular e o mais respeitado clérigo que havia na cidade por aqueles tempos. Era um ancião venerando, um daqueles raros homens que, no meio da maior corrução a Providência conserva sempre no mundo para que se não apague nunca de todo na terra a crença na virtude e a fé no poder do céu. Paio Guterres, o arcediago de Oliveira, vigário e penitenciário do bispado, verdadeiro ministro do altar, devoto sem hipocrisia, austero com suavidade, grave sem fasto, era honrado de todos, do próprio bispo que o detestava, do povo que o amava.

Apenas apareceu no balcão Paio Guterres, foi saudado por uma aclamação geral e entusiástica da multidão.

_ Meus filhos, sossegai, e ouvi-me.

Não se ouviu o menor sussurro. Ele continuou:

_ Aninhas, foi presa esta noite... à minha ordem.

Um rumor de espanto e de indizível assombro soou por toda aquela multidão.

_ Sim, à minha ordem. Está acusada de graves culpas... Deus permitirá que falsamente.

_ Falso! ... É falso. Aninhas é uma santa.

_ É, é uma santa, Aninhas.

_ Será: assim o espero. E hoje mesmo há de ser absolvida e posta em liberdade se assim for. Tende confiança em mim. Seu feito está em meu poder; sou eu que o hei de julgar. E eu... Responda da sua pessoa.

_ Ah! Então...

_ Ide, meus filhos: sossegai. São horas de sair a nossa procissão. Mostrai-vos bons cristãos e tementes a Deus; deixai-nos cumprir com os preceitos da igreja. Retirai-vos, meus filhos, com a benção de Deus.

_ E a vossa. Queremos a vossa benção.

_ Em nome do senhor de toda a justiça, do premiador e castigador eterno, do que julga os povos e reis, do que morreu por todos nós, e não mais por uns do que por outros! Meus filhos, eu vos abençôo: ide em paz.

A força de uma voz respeitada, no meio da efervescência popular, é um dos contínuos milagres que atestam o poder de Deus, e justificam da sua glória.

O tumulto sossegou e dissipou-se.

Dali a pouco as portas da catedral estavam abertas, e a procissão saía gravemente, entoando as ladainhas e preces públicas. O bispo, em todo o esplendor da pompa católica, seguia no coice da procissão. A mitra resplandecente carregava-lhe nas altivas rugas da testa; o braço parecia agitado de leve tremor quando se abordava no báculo de ouro; mas o pé caminhava firme, e os olhos iam serenos no livro do cantor que o precedia.

Tomaram para a porta do Sol, desceram o íngreme Codeçal abaixo, e chegaram à escura margem do rio, cantando, rezando e invocando os mártires e os apóstolos, os confessores e as virgens que rogassem por nós!

XVII

A Procissão

Nestes prosaicos e minguados tempos em que nós vivemos, sabe Deus o que lhe custa à excelentíssima câmara municipal de Lisboa a ir a casa de Santo Antônio no seu dia, e à ilustríssima câmara municipal de Coimbra a ir pela festa da Rainha-Santa visitar a sua padroeira de além da ponte. O código administrativo não beatificou mais santos que Santa Urna, e os espíritos fortes do conselho são iconoclastas decididos, que fazem guerra a todas as velhas superstições daquelas desgraçadas e vergonhosas eras em que Portugal estava tão atrasado que apenas descobria a Índia, circunavegava e civilizava a África, povoava a América, escrevia as Décadas de barros, compunha os “Lusídas” de Camões, edificava Belém, e fazia outras soezes ninharias do mesmo jaez.

Pobre Portugal velho e relho, que não tinha agiotas nem lordes do tesouro, nem pontes pênsis nem garantias pênsis, nem barões, nem pedreiros-livres, e eras o escárnio da Europa que hoje pasma de te ver correr como um caranguejo por essa estrada da civilização fora!

Dancemos a polca, e via o progresso!

Inda assim: o progresso do nosso regresso, como diz aquele grande e coruscante orador nosso, cuja eloqüência, de parêntesis seja dito, também dança a polca.

Dançar, dançavam os cônegos do Porto, ainda em tempo de minha avó que o viu, e mo contava quando eu era pequeno: dançavam sim diante do altar de São Gonçalo no seu dia. E era uma devota dança hierática, segundo agora se diz em grego – que nós demos furiosamente em falar grego desde que o não sabemos. Que mandávamos os Teives e os Gouveias ensina-lo a Paris, falávamos português.

Pois dançavam é certo, dançavam os cônegos do Porto diante de São Gonçalo de Amarante, em trinta préstitos e procissões em que iam a muitos oragos e festas de vários santos e santas. E assim mesmo iam os outros cabidos e colegiadas do reino, que hoje nem ao coro vão; e mais, não tem nem sequer o código administrativo a que se apegar.

Entre as muitas festas processionais da nossa boa sé – me dizia um beneficiado velho que andou comigo ao colo, e era a mais santa a1lma de beneficiado que ainda houve – foi talvez a primeira a de são Marcos evangelista que os de Gaia ou Cale pretendiam ser o fundador da santa igreja potugalense, em oposição aos de Miragaia, que a queriam fundado por são Basileu na sua freguesia de São Pedro estra-muros.

Já na minha infância porém, e quando o meu velho beneficiado me enriquecia o espírito e a memória com estas tão interessantes e romanescas arqueologias, já a procissão das ladainhas de São Marcos não passava de São João-novo, e dali de ao pé da ermidinha da Esperança é que os cônegos, incensando para Gaia, cantavam o Boa gente, boa gente! Antífona em vulgar de que nunca pude saber a explicação nem pelo meu beneficiado nem por nenhum outro cronista oral ou escrito, dos muitos que tenho consultado.

O caso é que a cerimônia ainda assim se praticava em nossos dias, e que em eras mais remotas a procissão passava, como a descrevi, de além do douro, a ia à própria capelinha do santo cujas ruínas ainda hoje estão a meia encosta das ribanceiras de Gaia.

E devia ser razão bem ponderosa a que obrigava bispo e cônegos, os senhores da terra do Porto, a passar o rio, e a visitar essa gente de Gaia e Vila-nova que lhes não obedeciam nem pagavam tributo, e que, fortes da proteção real, lhes faziam acintes com a sua pesca livre, o seu comércio franco, e até com o monopólio do sal que tantas vezes lhes dava el-rei só para apoquentar os vassalos e homens do bispo, que eram todos os da cidade.

Fosse ela qual fosse a tal razão, e durasse a prática desde quando e até quando durasse, que o não sabemos ao certo; o certo é, e o sabemos, que ainda durava no tempo desta nossa história, pois aí vai chegando à margem do rio a solene procissão das ladainhas, e ressoando pelos cavos alcantis que lhe emparedam os precipitosos caudais, o sublime e plangente responsar do coro:

Ut nos exaudias!

Te rogamus, Audi nos!

Uma flotilha de saveiros com seus toldos embandeirados e ornados de festões de flores, seus conveses juncados de espadanas, está prolongada com a praia, e recebe a procissão a seu bordo.

As ladainhas não pararam, o canto não cessou: acompanha-o agora o remar certo e compassado dos barqueiros cujas vozes, roucas mas afinadas, se juntavam também ao clamor geral do coro, e bradavam com ele:

Te rogamus, Audi nos!
É impossível imaginar espetáculo mais solene e grandioso, do que esse que então ofereciam as águas e as margens do douro.

Toda a divina poesia da religião e da natureza, todo o pitoresco dos costumes feudais, toda a animação dos grandes ajuntamentos populares, se reuniam e se harmonizavam nesse quadro.

Um sol de primavera batia a prumo sobre águas, rochas e verduras. O ar estava sereno e tépido, o céu azul e transparente, a água corria mansa; de um lado e outro do rio a população da cidade e da vila, prolongada pelo brancos areais que se espelhavam com o sol, contemplava em religioso silêncio a marítima procissão que, em longa diagonal, ia cruzando o rio quase como se o descesse, pois é considerável a distância que vai donde hoje é a Porta Nobre, em que embarcara, até o desembarcadouro de Gaia onde foi ter.

Rio acima, as várzeas de Campanha, de Ramalde e de Avintes resplandeciam com as esmeraldas da jovem primavera; para a banda da Foz os ceiceirais de Val-de-Amores descaíam sobre a água como se ainda estivessem acoitando os traidores e vingativos barcos Del-rei Ramiro quando veio desde Galiza em busca da mulher que lhe tinha o mouro, porque ele tinha a irmã.

Esse Val-de-amores, que depois foi Val-de-Piedade quando os Capuchos aí fizeram seu convento e o beatificaram com o devoto nome que ainda tem – hoje... Oh triste, tristes tempos nossos! É Val de tanoeiros ou Val não sei de que, porque lhe fizeram da igreja um armazém, e da cerca tão viçosa e tão fresca. Algum mau campo de milho talvez.

Eu, ainda me lembra, e era bem pequenos, das tardes da trezena do santo em que aquela linda cerca parecia o jardim de Kesington ou o das Tulherias, de povoada que se fazia pelas mais belas e elegantes damas da cidade, por um concurso imenso de todas as classes e idades: naqueles treze dias o Val-de-Piedade tornava a ser o Val-de-Amores.

Seria o melhor passeio público que o Porto podia ter, e rivalizaria com os primeiros do mundo, se nisso o tivessem convertido. Venderam tudo por não sei quantos mil réis, mas poucos – e em títulos azuis, havia de ser.

Ex digito gigas: ninguém faz melhor a sua transição do antigo para o novo estado social, do que nós a fizemos. Juízo, gosto, proveito, tudo se juntou.

Tornemos à nossa história.

A procissão cantava:

Exaudi nos, domine!

E os saveiros abicavam nas praias de Gaia. Desembarcando e cantando prosseguiam nas ladainhas; e assim foram subindo até o principio da encosta que leva ao castelo, e onde a igreja ou ermida do santo era situada.

Todo o povo da vila e suas vizinhanças acompanhava, como em triunfo, e recebia quase como homenagem à sua independência, a visita do senhor bispo e do senhor cabido, tão senhores do outro dado do Douro – ali hóspedes, respeitados sem por seu caráter sagrado de eclesiásticos, mas sem autoridade nem poder civil de nenhuma espécie.

E contudo ajoelhavam, e o bispo abençoava; e o clero prosseguia cantando e o povo respondendo aos versos da ladainha... A religião do Crucificado á a religião da liberdade e da tolerância, não faz partido com nenhuns ódios e discórdias civis: os que dizem racca a seu irmão desobedecem aos preceitos do Cristo.

Via-se porém nas fisionomias dos vilnoveses não sei que expressão mais altiva do que o costume, mais animada – ao que parecia – pela consciência de sua liberdade e independência. Olhavam para o bispo com certo ar, seguiam os cônegos com tal desgarre, respondiam às preces com uma voz tão segura e folgada, que um amigo de semelhanças clássicas não duvidaria compara-los aos jovens e altivos concidadãos do filho de Réia Sílvia recebendo nos infantes muros de Roma uma procissão de sacerdotes albaneses que lhe trouxesse, em vassalagem, e para futuro paládio de sua grandeza, a cativa imagem de Vesta que já não tem que fazer em Alba-Longa.

A clerezia do Porto eram os albani patres, Gaia afetava as soberbas de alta moenia Romae.

Perdoai-me porém, ó veneráveis irmãos românticos, perdoai-me, que eu prometo não tornar a fazer a mais leve alusão às proscritas reminiscências do meu pobre velho latim...

Mas havia sem, havia o que quer que fosse extraordinário, que animava os independentes populares de Gaia e Vila-Nova. Eles seguiam todavia quietos e devotos a procissão; a assim chegaram todos à capela do santo onde entraram.

O bispo subiu ao seu trono; à volta dele, em círculo, os cônegos; e logo começou a missa com que se ia concluir a festa e rogações daquele dia.

Chegava já a missa ao ofertório, e a congregação de joelhos e inclinada comunicava devotamente no augusto mistério do Sacrifício que nos regenerou e fez livres, quando um mancebo elegantemente vestido mas todo coberto de pó, a afadigado ainda, ao que parecia, de caminhar longo e pressuroso, entrava, com algum disfarce, na igreja. Deitou um relance de olhos percrutador pela variada multidão que ali se juntara, e foi ajoelhar-se a um canto da igreja, detrás de dois homens de madura idade, cujo modo e trajo os inculcava pertencentes a uma como meia gradação entre burgueses e homens da plebe.

É essa espécie que os modernos Rabelais designam hoje pela tão característica denominação – l’épicier: espécie rara dantes, mas que atualmente constitui a maioria das grandes cidades, dos grandes focos de população civilizada.

Mole como a sua manteiga, estúpido como os seus macarrões, pateta como os seus chouriços, e rançoso como o toucinho que vende, o merceeiro – l’épicier – é o tipo dessa bastarda aristocracia da plebe que se propagou e cresceu tão numerosa, e cuja missão política é unicamente engolir as petas de todas as proclamações, dar consumo às sandices das gazetas dos governos, acreditar no sistema que felizmente nos rege, e por luminárias nos dias de gala.

Quando eram poucos, tinham a energia e as grandes aspirações de todas as classes que precisam viver fortemente para viverem, porque se não fiam na bruta segurança do número.

O recém-chegado ajoelhou, benzeu-se, e depois de breve oração, que provavelmente foi mental porque lhe não boliam os beiços, com a ponta da vara que trazia na mão, tocou levemente no ombro de um dos dois homens que lhe ficavam adiante. O homem voltou-se rapidamente, e encarando com o mancebo que assim o interpelava, exclamou em voz baixa:

_ Oh! Vós aqui!... Já?

_ Bem tarde me parece Amim. Vinde: saiamos para fora, que temos que falar.

_ Deixai acabar a missa.

_ Não: já. Viva Deus! Que entre a hóstia e o cálice, na própria presença d’Aquele que está no altar, te quisera eu dizer o que tenho a dizer-te... Mas não pode ser; vem.

_ Vamos. Meu irmão também?

_ Teu irmão?... Eu sei? Não tenho fé em teu irmão. Ele não era?...

_ Era sim; e eu também, por meus pecados. Pouco melhor que ele. Acudiu-nos Deus a ambos. Agora podeis falar diante dele como diante de mim.

_ Pois que venha.

Esta conversação breve, rápida, cochichada a ouvido e ouvido, não foi percebida de ninguém mais na igreja. Os dois populares e o jovem cavaleiro saíram, sem ser vistos, por uma porta lateral.

É tão fino e perspicaz o amável leitor, que, estou certo, já adivinhou quem era o mancebo...

Era sim, senhor, era o nosso estudante, o nosso Vasco. Os dois populares é que não adivinhou seguramente quem seriam.

Tenha a bondade de ler o seguinte, e lá lho diremos.

XVIII

Coalização

O mancebo caminhava silencioso adiante; no mesmo silêncio o seguiam os dois companheiros. De rua em rua, se aquilo são ruas – antes de beco em beco, ou mais exatamente de socalco em socalco, iam saltando pelos informes gradins do pouco esplêndido anfiteatro em que se encastela o triste lugarejo de Gaia.

Chegavam ao pé da romanesca fonte Del-rei Ramiro que, em seu gárrulo correr, vai ainda repetindo o palrear incessante da faladora Peronela, quando ali vinha do castelo buscar água para sua ama – e tardava, tardava, pela trela que dava, enquanto a infusa enchia e a senhora esperava... deixá-la esperar.

Passam essa fonte tão celebrada na tradição popular, passam a antiga casa que o povo apelida também de “Paço Del-rei Ramiro”, mas que visivelmente é uma construção do décimo quarto século, e que talvez fosse naquele tempo a residência dos ciosos reis de Portugal quando ali vinham quase ocultamente – aforrados, diria um purista – conspirar com o povo contra os bispos seus senhores. Conspiração permanente por mais de quatro séculos que os reis foram demagogos, porque precisavam do povo, para resistir primeiro, para destruir depois, a aristocracia eclesiástica e secular que tantos os pejava.

É comparativamente moderna a desinteligência dos reis com os povos. Foi necessária muita má fé, muita traição de coroados tribunos para desenganar o pobre do povo que tantos anos combateu por eles e quase só para eles, cuidando que para si combatia.

Depois da vitória, o leão fez a partilha do costume; e ainda em cima pos-se a devorar o sendeiro que o auxiliara...

Sendeiro que briga com um leão, mas que se deixa albardar depois como quem é...

Vasco, o nosso estudante, pois não há mister de mais mistérios – e perdoem-me o “mister” que aqui veio mais pela graça da aliteração do que por outra coisa: tão safado e sáfaro o trazem por aí os periódicos e os dramatistas, que ninguém já pode com ele! – Vasco, digo, o nosso estudante, tomou por uma estreita viela à esquerda da fonte; e, a poucos passos nela andados, entrou por uma porta baixa e aberta de que pendia tristemente o escuro e emblemático ramo de pinheiro.

Os outros dois entraram após ele.

Era uma taberna de pescadores, de marujos e azeméis. A taberna estava só, as estreitas e mal compostas mesas desertas. Sentaram-se os três a uma delas.

_ Um pixel do melhor! – disse Vasco.

E uma velha, com mais traça de bruxa que de taberneira, ergueu, da baixa lareira onde estava acocorada, a mal-azada cabeça, e tornou logo a descair no que podia ser sono ou letargo.

_ Um pixel, bruxa excomungada! Não ouves?

_ Bruxa, bruxa!... Já ouve bruxas em Gaia, que era a terra delas e sempre o foi. Hoje não há bruxas que valham, onde estão benzedeiras e rezandeiras que todo lo levam e todo lo comem... Má eira as colha!.. Que bruxas? Hum!

Rosnando assim, vinha a bruxa, arrastando-se nos decrépitos tamancos (leia “socos” no mais alatinado dialeto portuense) e chegando aonde estavam sentados os três, estacou de repente. Com olhos que não pareciam já feitos para over da vista exterior, se pôs a contempla-los numa atitude de indefinível expressão.

Disseras de um cadáver que reconhece um vivo... De um esqueleto em cuja caveira se iluminasse de repente o vazio das órbitas descarnadas para vos olhar e saudar.

Os três homens estavam fascinados; a velha parecia ter o poder de fixar sobre todos três ao mesmo tempo, e com igual e não dividido alcance, aqueles olhos tão mortos... E tão vivos.

Um sorriso infernal correu mais para um lado, e sem as desfranzir, as asquerosas rugas daquela boca sumida: e a velha disse:

_ Com que são hoje as ladainhas de Marcos evangelista? Devem de ser. E bem as canta quem as canta. São os cônegos na Sé. Dizei-me vós a mim quem é.

E riu-se, riu-se de bruxa: uma risada tossida e para dentro, destas que fazem arrepiar e estremecer.

Daí, com uma pieira rouca e desafinada, se pos a cantar, ou antes, a regougar estas trovas de má mente e mau esconjuro, que lhe saíam trepidando dos beiços como espuma de feitiços que fervem nem lar maldito em caldeirão de três pés, manco, rachado e al lume de figueira verde.

O bispo com sua bispança,

Bem lhe praz fazer folgança,

Mais os padres de Santa Maria,

E mais a raposa que fia.

Bem fia a raposa, bem ela fiava,

Rezava a Senhora, rezava e cantava:

Caiu a raposa no laço que armava.

Foi o raposinho

Que aventou o ninho.

Entraram os lobos... Eles hão de entrar

Oh, se hão de entrar!

E o bispo, a raposa e o seu raposinho,

Tudo há de dançar.

Dançar, dançar, meu São Gonçalinho!

Bebei do meu vinho.

E com uns saltos trôpegos como de dança de entrevados, a velha bailava em cadência com o seu arrepiado cantar. Parou de repente, fitou os olhos no mancebo e, soltando uma longa gargalhada infernal, virou-lhe as costas. Arrastando, arrastando. Foi buscar um bom pixel de mais canada, encheu-o de vinho, e voltou a por-lho sobre a mesa.

O três pasmavam e não diziam palavra, ainda fascinados do estranho olhar, do mais estranho cantar, e das arrastadas evoluções da dança da bruxa.

Ela tornou para o seu canto na lareira, acocorou-se, e descaiu a cabeça no mesmo letargo ou sonolência de que tão extraordinariamente despertara.

_ A que má cova de Satanás nos trouxestes, mancebo? – disse um dos três por fim,. – Peçonha terá este vinho, por mais que me digam.

_ Tem, tem, e da pior, que é verde como agraço, o cão – respondeu Vasco depois de vazar a meio um daqueles imensos copos minhotos que fariam espanto e meteriam respeito até à mesma bíbula pregênie britânica. E continuou logo: - como um cão, o maldito! E para quem está costumado a fazer penitência no tinelo de certo prelado apostólico...

_ À porta Santa de Roma farei eu penitência sete anos... sete anos e um dia bem contados, se com tal me perdoasse Deus o mal-amassado pão que lá comi, o agro vinho que lá bebi, o próprio ar empestado que lá respirei...

_ Não haveis mister de ir a Roma, que perto tendes a absolvição. Esta noite resgatareis a alma se quiserdes.

_ Esta noite?

_ Sim. As ordens que trago são para que esta noite se levante tudo, a acabemos por uma vez com a insuportável tirania que nos oprime e nos desonra. El-rei está em... Podemos falar seguramente aqui?

_ Se não receais a bruxa... Mas dela bem sabemos que nada há de temer!... Cá por nós dois...

_ Teu irmão largou com efeito o serviço do diabo e do almudeiro?

_ O almudeiro não, não o largou de todo – respondeu o terceiro interlocutor que até ali estivera em profundo silêncio: - não o largou de todo, não, que ainda tem de ajustar com ele um resto de contas. O almudeiro almuda bem, mas precisa aferido. E há de ser pela minha mão: não cedo esse encargo a ninguém.

_ Bem está. Pois agora sabei ambos... Mas que se não diga por enquanto na cidade... Sabei que el-rei veio aforrado ao mosteiro de Grijó, que aí está desde esta madrugada, e daí saírá à boca da noite para entrar no Porto sem ser visto. É preciso que nós seguremos as portas com tempo, e primeiro que todo a Sé, que é o mais forte de toda a cidade. De que ânimo está o povo?

_ De se pagar por suas mãos, que é o único pagamento seguro que tem.

_ E que farão os nosso juízes e vereadores?

_ O costume: dar divas a quem vencer.

_ Estareis vós de vigia no paço esta noite, Rui Vaz?

_ Por quem tomais vós, senhor Vasco? Eu era homem do bispo, servia-o com lealdade; pesava-me na consciência, é certo, mas servia-o, porque fé e lealdade estão primeiro que tudo... Desde hoje não sou homem seu, nem como seu pão, nem bebo seu vinho; posso fazer-lhe guerra por conta Del-rei, e do povo cujo sou, e por minha conta também, e mais... Mais de uma outra pessoa, senhor Vasco...

_ Falastes com Gertrudes, vós? Falastes com ela, Rui, meu amigo?

_ Falei sim: e não há falar com aquele anjo que se a gente não sinta virar para melhor, como de dentro para fora. Aqui tendes a meu irmão Garcia Vaz que ela converteu também.

_ A ti! Pois também a ti! – disse o estudante voltando-se para o ex-portageiro.. Ex-cabo de polícia traduziríamos hoje... Esperemos em Deus para salvação da sua alma e bom fim da nossa história que a verdadeira tradução seja ex-tratandte.

_ A mim, sim senhor, - respondeu ele; - a mim, que de a ouvir falar ao povo com aquele inocentinho nos braço... O filho da pobre Aninhas que eu ajudei a ... E o mais culpado de todos fui eu, porque já o coração me dizia que o era antes de fazer o que fiz. Era, era. O coração bem me dizia que, em vez de dar a Pêro Cão a gazua que lhe forjei para ele abrir a porta, com esta choupa lhe devia eu ter aberto a barriga a ele... Saísse o que saísse... Que não havia de sair coisa boa. Mas é verdade que de a ouvir falar ao povo com aquele inocente nos braços, e dizer-lhe o que lhe Lea disse, toda esta alma se me voltou; jurei por quantas juras há, más e boas, que o mal que lhe eu fiz, alguém mo havia de pagar.

_ Pois bem homem! Agora o mal está feito e o que devemos tratar é do remédio. Paio Guterres é certo que respondeu por Aninhas?

_ Certo: ouvi-lho dizer eu diante do povo todo; e daí seguros estamos que lhe não pode suceder nenhum mal. Mas...

_ Mas – Interrompeu Garcia Vaz – também o bispo prometeu que nos entregava Pêro Cão para o enforcamos, e ele ainda está dentro do paço, rindo e zombando dos gritos do povo... Que por fim é povo, não sabe senão gritar.

Vasco ficou pensativo e abstrato, sem dar atenção ao que diziam os dois irmãos, que continuaram a conversar entre si pelo mesmo teor. Ele permanecia como fechado dentro de suas meditações.

Passado algum tempo, levantou-se da mesa de repente e disse:

_ Parti já: quero as portas da cidade seguras. A Sé fica por minha conta.

_ Vós, Vasco! Vós, senhor, fareis essa... Essa?...

_ Essa traição: é o que queres dizer. Farei. E sei o que faço.

_ Não sabeis não, mancebo. Oh senhor Vasco, eu pesa-me na consciência... É verdade que jurei não vo-lo dizer, mas agora, mas nesta ocasião...

_ Não vos pese, nem pese nada, amigo. Sei tudo, e sei o que faço, sobretudo. Parti já ambos sem mais detença. E o povo que não assossegue nem durma no seu caso. Povo que dorme, tirania que desperta. El-rei é por nós, mas não basta: os grandes não são pelo pequenos senão enquanto os pequenos podem. Adeus! Parti já. Eu não tardo no mesmo caminho.

_ E vós?... Já falastes com ela, vós?

_ com a velha? Com esta velha que cuida que é bruxa? Deixai-a por minha conta, que a conheço de há muito, e sei... que nenhum perigo corremos com ela.

_ Bem o sei, mas...

_ Ide n’hora boa, ide já, ide.

_ Vou. E ela virá?

_ Virá.

O ex-archeiro e o ex-portageiro saíram enfim.

Mas Rui, o nosso antigo amigo, tornou logo atrás, como apertado de um escrúpulo interior que não podia vencer, e baixo ao ouvido de Vasco, lhe disse:

_ Lembrai-vos do que ontem à noite vos disse naquela negra sala de armas do paço?

_ Lembro, sim.

_ Sabeis, Vasco, filho, mancebo?... O bispo... Bom bispo não pe ele... Mas sabeis vós tudo... Tudo o que lhe deveis?

_ Ide em paz, honrado homem; ide e deixai-me, que tudo sei.

_ E apesar disso?...

_ E apesar disso, e por isso mesmo... Deus será juiz entre nós, Rui Vaz. Ide, que se faz tarde.

O archeiro encarou o mancebo como quem lhe queria ler a lama no semblante. Vasco sorriu com um sorriso misterioso e descorado que se não deixou interpretar.

_ Adeus! – disse o homem do povo; - senhores lá o sabem e o entendem. Tendes sangue e criação para tudo, mancebo. Mas olhai que o que Deus mandou, mandou-o para todos.

_ Assim é, meu amigo, ide.

_ Vou, vou, e a Sua vontade seja feita sobre tudo! Falai bem com a bruxa; que vos diga, que vos ponha em claro...

Vasco já não ouviu estas últimas palavras: passeava a largas passadas no chão desigual e úmido da taberna, que não era senão terra batida. Rui Vaz saiu sem o ele ver, nem interromper seu distraído e agitado passeio.

As puas verdes e resinosas das folhas de pinheiro que juncavam o chão, rangiam melancolicamente debaixo dos pés do mancebo; e por alguns minutos não se ouviu naquela desolada estância mais som que este triste som. Via-se, nas expressivas e caracterizadas feições do jovem que o seu espírito e o seu coração lutavam alguma luta tremenda; mas tudo se passava lá dentro, não veio nem um suspiro à flor dos lábios.

Que tempo seria, não sei; mas foi muito tempo que se passou assim.

De repente Vasco foi-se à porta da rua, fechou-a, e levantando a tranca enorme que atrás lhe jazia, atravessou-a e firmou-a nos grosseiros encaixes que para isso estavam esburacados nos informes alizares de bruto granito. Daí, às apalpadelas, porque a casa ficou quase às escuras, caminhou para a larga e enfumada lareira onde ardia um resto de tronção de pinheiro, e de donde agora faiscavam, mais do que ele, os olhos da velha que parecia ter acordado de seu habitual letargo. Os olhos da velha luziam, luziam como carvões acesos... O mancebo caminhava lento mas certo para aquela luz terrível... A velha ergueu-se em pé, direita, alta e forte, como se o asqueroso sapo que ainda agora se arrastava disforme pelo torpe lodo daquele chão, subitamente se transformasse nem dos gênios maus da miraculosa lâmpada de Aladim.

XIX

Tornemos ao Arco

Dez anos esteve Cervantes para fazer trasladar e por em ordem os manuscritos de Cide Hamet Benengeli, e nos dar enfim a última parte da história do Cavaleiro da Mancha. Eu não te fiz esperar senão cinco, leitor amigo e benévolo, por este segundo e derradeiro tomo do bendito arco de Sant’Ana. E tive de fazer eu tudo, eu só por minha mão, decifar a enrevezada letra do códice dos Grilos, que, entre palavras safadas, linhas inteiras ilegíveis, folhas rotas e outras dificuldades semelhantes, me deu mais que fazer do que um verdadeiro palimpsesto.

Não tive neste intervalo, é verdade que não tive, quem me fizesse uma segunda parte sub-reptícia e caluniosa, como lhe fizeram ao pobre de Miguel de Cervantes, que o obrigou a dar tantas satisfações, e a torcer até o rumo de sua história. Mas críticos e censores não me faltaram, pragas e praguentos me vieram de toda a parte; e chegaram a acusar-me de quixotismo, que sonhei gigantes em moinhos de vento para ter com quem brigar, e degolei exércitos de inocentes cordeiros como se foram a pugnaz mourisma Del-rei Almançor, o de arregaçado braço.

E tudo isto por que leitor amigo? Porque ameacei com a ponta do azorrague Del-rei D. Pedro as pretenções absurdas e anti-evangélicas de certos agiotas do catolicismo que abusaram da boa fé da presente geração e pretenderam granjear em proveito seu, de suas pessoas, o espírito mais religioso da época.

Há cinco anos chamaram-me visionário. Que dizem hoje, senhores censores? Vejam a Inglaterra, onde, à sombra de puseysmo e de outras formas de transição e transação, o catolicismo entrava já nas mais fortes cidadelas da fé luterana, vejam como por lá se tem abusado, e como o governo se começa a arrepender de sua tolerância. Vejam na Itália como se está suicidando o papado, e pregando-se urbi et orbi o cisma, a heresia, a dispersão da Igreja universal. Vejam enfim, na nossa pequena e pobre terra, a ignorância, a crápula, a simonia, o servilismo político andar desonrando a estola e a mitra, entregando-as ao desprezo e ao ódio popular.

E com tudo isto, querem dominar, e são ferozes e atraiçoados inimigos da Liberdade, que, filha do Evangelho, só pode e só há de sustentar o Evangelho; que, tendendo à universalidade, como a Igreja, é a sua mais poderosa auxiliar, a sua única verdadeira esperança na terra. Porque hoje, se não há Dioclecianos perseguidores nem Julianos apóstatas, também não há Constantinos protetores. Os príncipes querem para si: tomara o trono que lhe acudisse o altar, quanto mais ampara-lo ele! A Igreja, quem lhe resta é a Liberdade; é pela Liberdade que se há de cumprir a promessa divina de que não prevalecerão contra ela as portas do inferno.

Dizia o meu amigo R.: “Tu não chegas a imprimir nunca o segundo volume do Arco” – Imprimo, imprimo, respondi eu, em me chegando outra vez a mostarda ao nariz com estes padrecas ingratos. Valemos-lhe nós, nós os rapazes do meu tempo, que entramos a pregar a favor deles, em economia política deste século e a filosofia do século passado. Ambas os proscreviam; todos os homens graves e sérios de quarenta anos para cima, votavam por elas: a rapaziada é que se meteu no meio e não deixou. Vem eles depois e voltam-se contra nós porque julgam que já nos não precisam... Agora o veremos.

Inda assim, meia dúzia de padrecas soezes, um que outro bispo ignorante e depravado não são o Clero nem a Igreja. Por esta somos nós como sempre fomos e seremos. Aos maus sacerdotes havemos de pendura-los do Arco abaixo. Que preguem daí os seus sermões para os gaiatos se rirem; que excomunguem daí os que não crêem nos milagres que eles inventam; e os que forem acadêmicos que escrevam daí as suas memórias. Não lhes damos outro castigo nem queremos outro divertimento para nós.

Aí os deixo pendurados como ex-votos de cera, com serem bem sebentos alguns deles.

E nós vamos leitor amigo, em busca do nosso estudante, do nosso Vasco. Vamos ver o que ele faz metido há tanto tempo naquela taberna de Gaia, só, ali fechado com aquela bruxa tão feia. E vamos saber de Aninhas e da sua amiga Gertrudes. E se a bernarda dos caldeireiros gorou ou foi por diante, e conseguiu aclamar o Senatus Popilusque Portucallensis sobre as ruínas do trono episcopal. Se a seráfica pança de F. João da Arrifana ou o municipal abdômen de mestre Martim Rodrigues, metidos cada qual em sua cuia da balança, conseguiram restabelecer o equilíbrio do estado, fazer reinar, com o braço e baraço de Pêro Cão, a “ordem de Varsóvia” naquela inquieta terra do Porto. Se no meio disso, veio el-rei D. Pedro e se comeu a polpa da ostra, dando a metade da casca a cada um dos litigantes. Vamos ver tudo isso, que é tempo.

E, sem mais preâmbulo, amigo leitor, entremos no âmago da história, que agora te vou contar muito direitinha e enfiada desde o principio do seguinte, para o qual te peço que voltes a folha.

XX

A Bruxa de Gaia

Deixamos o nosso Vasco na presença da velha bruxa que se erguera do seu letargo e crescia diante dele como um espectro tremendo.

_ Estamos sós, Guiomar – disse o mancebo com voz que queria ser firme, mas que vibrava descompassadamente para não tremer.

_ Enfim! – respondeu a velha.

_ Enfim! Há muito que temo e desejo esta hora – tornou o mancebo – há muito que luto entre a necessidade e o terror de te ouvir, Guiomar, de ouvir o tremendo segredo que não sei se adivinhei já... Que Deus queira, oh! Faça Deus em sua misericórdia que eu não adivinhasse!

_ Palavras de homem! Bem, mancebo! Essas são palavras de homem, as primeiras que te ouvem promunciar estes ouvidos que latejam com a surdez da velhice e da enfermidade, e onde só retinem claros e distintos os sons que pronunciam os teus beiços, Vasco. Porque eu morri para tudo e para todos, menos para ti, menos para ti que és... és...

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