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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

XLIV
Carta de Carlos a Joaninha.

Évora - Monte...

de maio de 1834

É a ti que escrevo, Joana, minha irmã, minha prima, a ti só.

Com nenhum outro dos meus não posso nem ouso falar.

Nem eu já sei quem são os meus: confunde-se, perde-se-me esta cabeça nos desvarios do coração. Errei com ele, perdeu-me ele... Oh. bem sei que estou perdido.

Perdido para todos, e para ti também. Não me digas que não; tens generosidade para o dizer, mas não o digas. Tens generosidade para o pensar, mas não podes evitar de o sentir.

Eu estou perdido.

E sem remédio, Joana, porque a minha natureza é incorrigível. Te­nho energia demais, tenho poderes demais, no coração. Estes excessos dele me mataram... e me matam!

Tu não compreendes isto, Joaninha, não me entendes decerto; e é difícil.

És mulher, e as. mulheres não entendem os homens. Sempre o entrevi, hoje sei-o perfeitamente. A mulher não pode nem deve com­preender o homem. Triste da que chega a sabê-lo!...

E daí... quando se tem de morrer, antes saber a morte de que se morre, do que expirar na ignorância do mal que nos matou.

Tu és jovem e inexperiente, a tua alma está cheia de ilusões doces; vou dissipar-tas enquanto se não condensam, que te ofusquem a razão e te deixem para sempre escrava cega do maior inimigo que temos, o coração.

Quero contar-te a minha história: veras nela o que vale um ho­mem.

Sabe que os não há melhores que eu: e tão bons, poucos. Olha o que será o resto!

Tu não ignoras já hoje o por que fugi da casa materna: sabia a manchada de um grande pecado, e imaginei-a poluída de um enorme crime.

Esse homem que é meu pai, não o podia ver, hoje que sei o que ele me é... Deus me perdoe, que ainda o posso ver menos!

Minha avó, julguei-a cúmplice no crime; ela só o era no pecado. Perdoe-lhe Deus; e bem pode e bem deve, já que a fez tão fraca. Mi­nha pobre mãe sucumbiu por sua culpa, por sua irremissível compla­cência...

Deus pode e deve, repito... mas eu, como lhe hei de perdoar eu este rubor que sinto nas faces ao nomear minha mãe?

Tem padecido e sofrido muito... coitada!. A sua penitência é um martírio, a sua velhice uma longa paixão, e esse homem que a perdeu um verdugo sem piedade. Mas tudo isso é com Deus, não e comigo.

Eu sou filho; minha mãe morreu sem perdoar — não posso per­doar eu.

E quem me há de perdoar a mim? Ninguém, nem quero.

Não serás tu, minha irmã; não, que não deves. Porque eu amei-te com um coração que já não era meu; aceitei o teu amor sem o mere­cer, sem o poder possuir, traí quando te amava, menti quando to disse, menti-te a ti, menti-me a mim, e não guardei verdade a ninguém.

Mas espera, ouve; deixa-me ver se posso atar o fio desta minha incrível história - incrível para ti, bem simples para quem conheça o coração do homem.

Sai de Portugal, e posso dizer que não tinha amado ainda. Inclina­ções de criança, galanteios de sociedade, ligações que nasceram da vai­dade, ou que só os sentidos alimentam, não merecem o nome de amor.

Eu não tinha amado.

Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, e a mulher que se ama.

A beleza, o espírito, a graça, os dotes da alma e do corpo geram a admiração.

Certas formas, certo ar voluptuoso criam o desejo.

O que produz o amor não se sabe; é tudo isto ás vezes, é mais do que isto, não é nada disto.

Não sei o que é; mas sei que se pode admirar uma mulher sem a desejar, que se pode desejar sem a amar.

O amor não está definido, nem o pode ser nunca, O amor verda­deiro; que as outras coisas não são isso.

Eu vivi poucos meses em Inglaterra; mas foram os primeiros que posso dizer que vivi. Levou-me o acaso, o destino — a minha estrela, porque eu ainda creio nas estrelas, e em pouco mais deste mundo creio já — levou-me ao interior de uma família elegante, rica de tudo o que pode dar distinção neste mundo.

Estranhei aqueles hábitos de alta civilização, que me agradavam contudo; moldei-me facilmente por eles, afiz-me a vegetar docemente na branda atmosfera artificial daquela estufa sem perder a minha natu­reza de planta estrangeira. Agradei: e não o merecia. No fundo da alma e de caráter eu não era aquilo por que me tomavam. Menti: o homem não faz outra cousa. Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o fiz, e todavia tenho levado a vida a mentir.

Menti pois, e agradei porque mentia. Santo Deus! para que sairia a verdade da tua boca, e para que a mandaste ao mundo, Senhor?

Havia três meninas naquela família. Dizer que eram as três graças é uma vulgaridade cansada, e tão banal que não dá idéia de cousa algu­ma. Três anjos seriam; três anjos posso dizer com mais propriedade. E quando em nossos longos passeios solitários, por aqueles campos sem­pre verdes, por aquelas colinas coroadas de arvoredo, tapeçadas de relva macia, os seus vestidos brancos, singelos, simples, trajados sem arte, flutuavam com a brisa da tarde... e os longos anéis de seus cabelos — os de uma eram loiros, os de outra castanhos, não há nome para a indefinida cor dos da terceira — quando esses longos anéis descaiam de sua ondada espiral com o orvalho úmido do crepúsculo, e que a essa luz vaga e misteriosa eu as contemplava todas três com adoração e recolhimento devoto de alma — sinceramente exclamava: São três an­jos celestes que é forçoso adorar!...

E assim é que os adorava os três anjos, todos três. e não podia adorar um sem os outros.

Que me queriam elas, é certo; que insensivelmente se habituaram à minha companhia e já não podiam viver sem ela... ai! era preciso ser um monstro para o não confessar com lágrimas de gratidão e de remor­so,

Os mais difíceis e delicados ápices da perfeição de sua tão capri­chosa e tão expressiva língua, as belezas mais sentidas de seus autores queridos, o espírito e tom difícil de sua sociedade tão desdenhosa e fastienta, mas tão completa e tão calculada para sublimar a vida e a desmaterializar — isso tudo, e um indefinível sentimento do gentil, que só com natural tato se adquire, é verdade, mas que se não alcança com ele só — isso tudo aprendi ali das suaves lições que insensivelmente recebia a cada instante.

Se valho alguma cousa, tudo valho por elas; se tenho merecido alguma consideração no mundo, toda lha devo.

Vês que confesso a dívida, verás como a paguei.

O tom perfeito da sociedade inglesa inventou uma palavra que não há nem pode haver noutras línguas enquanto a civilização não as apu­rar. To flirt é um verbo inocente que se conjuga ali entre os dois sexos, e não significa namorar — palavra grossa e absurda que eu detesto - não significa "fazer a corte”; é mais do que estar amável, é menos do que galantear, não obriga a nada, não tem conseqüências, começa-se, acaba-se, interrompe-se, adia-se, continua-se ou descontinua-se à von­tade e sem comprometimento.

Eu flartava nós flartávamos, eles flaortavam .

E não há mais doce nem mais suave entretenimento de espírito do que o flartar com uma elegante e graciosa menina inglesa; com duas é prazer angélico, e com trêsé divino.

Para quem nasceu naquilo, não é perigoso; para mim degenerou, breve, aquela plácida sensação em mais profundo sentimento.

Veio a admiração primeiro.

E como as eu admirava todas três. as minhas gentis fascinadoras!

E elas conheciam-no, riam, folgavam e estavam encantadas de me encantar.

Fizeram nascer os desejos!

Julguei-me perdido, e quis fugir.

Não me deixaram e zombaram de mim, da ardência do meu san­gue espanhol, da veemência das minhas sensações...

Em breve eu amava perdidamente uma delas — queria muito às outras duas; mas amar, amar deveras, de alma cuidava eu, do coração ia jurá-lo, era a segunda — Laura, mais gentil, mais nobre, mais ele­gante e radiosa figura de mulher que creio que Deus moldasse numa hora de verdadeiro amor de artista que se dignou tomar por esse pouco de greda que tinha nas mãos ao forma-la.

XLV
Carta de Carlos a Joaninha: continua

Laura não era alta nem baixa, era forte sem ser gorda, e delicada sem magreza. Os olhos de um cor de avelã diáfano, puro, aveludado, grandes, vivos, cheios de tal majestade quando se iravam, de tal doçura quando se abrandavam, que é difícil dizer quando eram mais belos. O cabelo quase da mesma cor tinha, demais, um reflexo dourado, vacilan­te, que ao sol resplandecia. ou antes, relampejava, — mas a espaços, não era sempre, nem em todas as posições da cabeça: — cabeça pe­quena, modelada no mais clássico da estatuária antiga, poisada sobre um colo de imensa nobreza, que harmonizava com a perfeição das li­nhas dos ombros.

A cintura breve e estreita, mas sem exageração, via-se que o era assim por natureza sem a menor contrafeição de arte. O pé não tinha as exigüidades fabulosas da nossa península, era proporcionado como o da Vênus de Médicis.

Tenho visto muita mulher mais bela, algumas mais adoráveis, ne­nhuma tão fascinante.

Fascinante é a palavra para ela.

O rosto oval e perfeitamente simétrico, pálido; só os beiços eram vermelhos como a rosa de cor mais viva,

A expressão de toda esta figura é que se não descreve. A boca breve e fina sorria pouco; mas quando sorria, oh!...

Vê-la num baile, vestida e calçada de branco, cingida com um cinto de vidrilhos pretos - toilette inalterável para ela desde certa época —sem mais ornato, sem mais flores, apenas um farto fio de pérolas derramando-se-lhe pelo colo — era ver alguma cousa de superior, de mais sublime que uma simples mulher.

Tal era Laura, Laura que eu amei quanto podia e sabia amar. Era pouco, sei-o agora; então parecia-me infinito.

Disse-lho a ela, disse-lho um dia que passeávamos sós, e depois de andarmos horas e horas esquecidas, sem trocar uma frase. Pensávamos, eu nela, ela não sei em quê.

Seria em mim?

Seria, mas não mo confessou.

E ouviu-me sem dizer palavra, sem olhar para mim uma só vez, sem fugir com a mão que eu lhe apertava, que lhe beijava, e que sentia fria e úmida nas minhas que escaldavam.

Era tarde, dirigimo-nos para casa. A porta disse-me: — Não entre; e vi-a banhada em lágrimas. Quis segui-la, fez-me um gesto imperioso que me confundiu. Pela primeira vez, depois de tanto tempo, fui só, triste e melancólico para a minha pobre habitação, onde passei a noite.

Quando era madrugada quis me deitar. Não dormi.

No dia seguinte recebi uma carta de Júlia: assim se chamava a mais velha, a mais sensível e a mais carinhosa das três irmãs.

O bilhete parecia indiferente; não continha senão palavras usuais, pedia-me que fosse almoçar com ela... não falava nas irmãs.

Senti que era chegada a minha hora, pareceu-me que ia ser ex­pulso daquele Éden de inocência em que tinha vivido. A letra de Júlia, uma letra linda, perfeita, natural, figurava-se-me um agregado de sinais cabalísticos terríveis que encerravam o mistério da minha condenação.

Vesti-me, fui, achei-me só com Júlia no parlour elegante de seu exclusivo uso.

Era um pequeno gabinete de estudo, ornado somente de umas étagéres com livros e músicas, uma harpa e um cavalete.

Sobre o cavalete estava o meu retrato esboçado, na estante da harpa uma romança francesa a que eu tinha feito letras portuguesas...

A urna assobiava sobre a mesa, Júlia fazia o chá e não parecia atender a mais nada.

É preciso que eu te descreva a pequena Júlia - Julieta como nós lhe chamávamos - nós, as duas irmãs e eu que rivalizávamos a qual lhe havia de querer mais...

Oh! que saudade e que remorso para toda a minha vida nestas recordações de fraternal intimidade!

Júlia era pequena, delicadíssima, propriamente infantina no rosto, na figura, na expressão e no hábito de toda a sua encantadora e dimi­nutiva pessoa.

Nenhuma inglesa, desde o tempo da rainha Bess, teve pé e ancle mais delicado. Nenhuma, desde o rei Alfredo, se ocupou tão elegantemente dos elegantes cuidados de um interior britânico - gentil quadro de gênero como não há outro.

Lady Júlia R. era a mais pequena e a mais bonita súdita britânica que eu creio que tenha existido.

Vista á lua, no meio do seu parque, volteando por entre os raros exóticos que no curto verão inglês se expõem ao ar livre, facilmente se tomava pela bela soberana das fadas realizando aquela preciosa visão de Shakespeare, o Midsummer night's dream.

Seus olhos de azul celeste, sempre úmidos e sempre doces, os ca­belos de um claro e assedado castanho, todos soltos em anéis à roda da cabeça e caindo pelos ombros, espalhando-se pelo rosto, que era uma lida continua para os tirar dos olhos, um corpo airoso, uma boca de beijar, os dentes miúdos, alvíssimos e apertados, a mão pequena, estrei­ta, e de cera — tudo isto fazia de Júlia um tipo ideal de bondade, de candura, de inocência angélica.

E era um anjo... oh se era!

Contemplei-a muito tempo em silêncio: ela sorria-me tristemente de vez em quando, mas não falava. Enfim almoçamos, levaram o trem.

Ela disse a sua aia:

— Febe, eu estou só com Carlos; e quero estar só. Em casa para ninguém.

— Sim, minha senhora. Resposta obrigada do criado inglês a tudo.

E ficamos sós completamente.

XLVI
Carta de Carlos a Joaninha: continua.

Júlia levantou finalmente para mim os seus olhos úmidos, assom­brados das mais longas e assedadas pestanas que ainda vi em olhos de mulher, e disse-me:

— Carlos, eu estou triste. Devia consolar-me: diga-me alguma cousa que me console. Fale-me.

— Que hei de eu dizer?,..

— É um cavalheiro, Carlos: diga-me que o é, e desassombre-me deste terror em que estou.

— Pois duvida, Júlia?...

— Não duvido. Queremos-lhe todos muito aqui... muito demais... receio: como havemos de duvidar?

— Oh Júlia, perdoe-me! — exclamei eu lançando-me a seus pés, tomando-lhe as mãos ambas nas minhas, e beijando-lhas mil vezes num paroxismo de verdadeira contrição. — Perdoe-me, Júlia: bem sei que fiz mal, e prometo...

— Não prometa nada, senão que há de ser cavalheiro. Isso sei eu e sinto que o pode cumprir.

— Juro por... por ela.

— Ela!... Ela ama-o, Carlos. É melhor dizer a verdade de uma vez, e encarar todas as conseqüências de uma posição difícil, do que iludir-se a gente sem as evitar. Laura ama-o, mas não deve nem pode amá-lo. Se fosse livre, não sei o que diria — não sei o que faria eu... Mas não se trata de mim — prosseguiu com volubilidade febril — não se trata de mim, Carlos, trata-se dela. Laura não o pode amar, está comprometida. Há de partir em três meses para a Índia.

— Para a Índia!

— Sim: é verdade: vê-lo-á. O seu noivo é capitão ao serviço da Companhia, e parte em casando,

Eu sentia-me morrer o coração dentro do peito: foi a primeira dor verdadeira de alma que sofri... Aquele era o primeiro amor sincero da minha vida, e aquela foi também a primeira excruciante pena de amor por que passei.

Eu que de tais penas zombara sempre, que as desterrava da reali­dade para os romances, eu!... Ai! que poeta ou que novelista soube nunca pintar um padecer como eu experimentei naquela hora?

Não sei o que fiz nem o que disse; não me recordo senão que senti as lágrimas de Júlia caírem-me sobre a face e misturarem-se com as minhas que corriam em abundância. Levantei os olhos, para ela, e a expressão que vi nos seus... oh! como a hei de esquecer nunca?

Quanto há de piedade e compaixão no tesouro infinito de um co­ração feminino se derramava daqueles olhos celestes para me consolar. La não ficava senão uma tristeza profunda, desanimada e mortal...

Não sei que vasto pensamento, que idéia louca... ou antes, que

pressentimento indeterminável e confuso me atravessou pelo espirito — ou seria pelo coração? — naquele momento...

Se Júlia?...

Mas não pode ser.

— Júlia, Júlia. — bradei eu, — quero vê-la: hei de vê-la uma vez ao menos. Não me negue este ultimo favor. Sei que devo, que preciso, que é forçoso fugir dela. Mas antes hei de dizer-lhe...

— O quê?...

— Que a amo como nunca amei, como nunca mais hei de amar...

— Ai Carlos!

— Que para sempre, sempre...

Júlia levantou-se sem dizer palavra, e lançando sobre mim um olhar de inefável compaixão, saiu rapidamente do quarto.

Achei-me só, não sei o que pensei nem se pensei. Sentia-me atur­dido da cabeça, exausto do coração — numa depressão de espirito que tocava na estupidez. Se me apontassem urna pistola aos peitos, não levantava o braço para a arredar... Já não sentia pena nem desejo. Parecia-me que começava a morrer; e não achava que morrer custasse muito.

Neste estado fiquei não sei que tempo; muito não foi. Percebi que se abria a porta, não tive força para levantar os olhos. Até que senti uma doce e querida mão na minha... era Júlia.. e era Laura também... santo Deus! que estavam ao pé de mim ambas.

Júlia tinha a minha mão na sua; e Laura, encostada ao ombro da irmã, deixava cair sobre mim aqueles olhos em que a severidade habi­tual se tinha relaxado numa indulgência tão doce, numa compaixão tão celeste que, juro por Deus, naquela hora acreditei firmemente que tinha diante de mim dous anjos seus, baixados nas asas da piedade divina para me trazer todo o perdão. toda a misericórdia do céu à minha alma.

Como te direi eu, Joana, querida Joaninha, como te direi a ti que me amas, a ti que eu amo — porque te amo, e Deus me castigue, que deve! porque te amo, cegamente, te amo com este infame e abominá­vel coração que Ele me deu — como te hei de eu dizer a ti, e para quê, as palavras que ali dissemos, os protestos que ali fiz, os juramentos que ali se deram, as promessas que ali foram trocadas?

Júlia foi para a janela — indulgente chaperão que nos não via e fingia não nos ouvir. O dia passou-se assim, um longo dia de junho que tão curto e rápido nos pareceu. Era noite quando fomos jantar.

À mesa, Laura apareceu em trajos de viagem: partia naquela noite para o Pais de Gales onde tinha uma amiga, com quem ia estar até ao dia terrível, e preparar-se para ele, me disse, longe de mim, no seio da amizade.

Imagine-se aquele jantar. Nem comer fingíamos. Ao sair da mesa achamos à porta da casa a caleche posta, o cocheiro na almofada, e o criado à portinhola. Montamos. as três irmãs e eu.

Eram duas milhas dali à estalagem onde tocava a mala-posta e onde Laura devia encontrá-la. Fizemo-las sem proferir palavra nenhum dos quatro.

A lua ia grande e bela com sua luz triste e fria por um céu sem nuvens. Era uma daquelas noites raras, mas admiráveis do breve estio britânico.

A areia que rangia com o atrito das rodas da carruagem nas lisas ruas do parque, os ramos descaídos das árvores por que roçávamos levemente ao passar, os veados mansos que se levantavam para nos ver — os faisões que erguiam seu rasteirovôo de moita para moita ao sentir o estalido do chicote, com que o cocheiro mais moderava do que excitava os seus cava]os, tudo para mim eram impressões de nunca sentida e inexplicável tristeza, Ficava-me a alma após tudo aquilo, sentia fugir-me a felicidade para sempre, e que era eu que a afugentava, e que me ia encontrar só, desamparado e proscrito no deserto da vida.

Não me sentia força para blasfemar, para maldizer de Deus, senão tinha-o feito.

Tinha: e outras ânsias mais angustiadas e mortais me têm aflito na vida; em nenhuma me senti tão capaz de renegar de Deus e descrer dele como nesta.

Seria efeito da sua inexaurível piedade que talvez quis acudir à minha alma antes que se perdesse, seria por certo — pois nesse mesmo instante distintamente me apareceu diante dos olhos da alma a única imagem que podia chamá-lo do abismo; era a tua, Joana! Era a minha Joaninha pequena, inocente, aquele anjinho de criança, tão viva, tão alegre, tão graciosa que eu tinha deixado a brincar no nosso vale; o nosso vale rústico, tão grosseiro e tão inculto! ó como as saudades dele me foram alcançar no meio daquelas alinhadas e perfeitas belezas da cultura britânica. Os raios verdes de teus olhos, faiscantes como esme­raldas, atravessaram o espaço e foram luzir no meio daqueloutros lumes que me cegavam. A esteva brava, o tojo áspero da nossa charneca mandavam-me ao longe as exalações de seu perfume agreste, e mata­vam o suave cheiro do feno macio dessas relvas sempre verdes que me rodeavam. As folhas crespas, secas, alvacentas das nossas oliveiras como que me luziam por entre a espessura cerrada da luxuriante vege­tação do norte, prometendo-me paz ao coração, anunciando-me o fim de uma peleja em que mo dilaceravam as paixões.

E tu, Joana, tu, pobre inocente, desvalida criancinha, tu aparecia-me no meio de tudo isso, estendendo para mim os teus braci­nhos amantes como no dia que me despedira de ti nesse fatal, nesse querido, nesse doce e amargo vale das minhas lágrimas e dos meus risos, onde só me tinham de correr os poucos minutos de felicidade verdadeira da minha vida, onde as verdadeiras dores da minha alma tinham de ma cortar e destruir para sempre...

Oh! de quê e como é feito o homem, para que e por que vive ele? Que vim eu, que vimos nós todos fazer a este mundo?

Eu sentado ali nas almofadas de seda daquela esplêndida carrua­gem, rodeado de três mulheres divinas que me queriam todas, que eu confundia numa adoração misteriosa e mística, — cego, louco de amo­res por uma delas, no momento de lhe dizer adeus para sempre... eu tinha o pensamento fixo numa criança que ainda andava ao colo! —Revendo-me nos olhos pardos de Laura que eu adorava, eram os teus olhos verdes que eu tinha na alma! Os sentidos todos embriagados da­quele perfume de luxo e civilização que me cercava, — era o nosso vale rústico e selvagem o que eu tinha no coração..,

Oh! eu sou monstro, um aleijão moral deveras, ou não sei o que sou.

Se todos os homens serão assim?

Talvez, e que o não digam.

Joana, minha Joana, minha Joaninha querida, anjo adorado da minha alma, tem compaixão de mim, não me maldigas. Não quero que me perdoes, nem tu nem ninguém, que o não mereço: mas que tenhas dó e lástima de mim.

Ai! que isso mereço eu, oh sim.

Deixa-me para aqui. Falta-me o ânimo para me estar vendo a este terrível espelho moral em que jurei mirar-me para meu castigo, donde estou copiando o horroroso retrato de minha alma que te desenho neste papel.

Sabia que era monstro, não tinha examinado por partes toda a hediondez das feições que me reconheço agora.

Tenho espanto e horror de mim mesmo.

XLVII
Carta de Carlos a Joaninha: continua.

Chegamos ao lnn (estalagem), triste casa solitária no meio dos campos á borda da estrada. A mala chegava ao mesmo tempo quase.

Eu dei a mão a Laura para sair da caleche e entrar no coche; e apenas tivemos tempo para um convulsivo shake-hands e para nos dizer adeus! adeus! com a afetada secura que exige a lei das conveniências britânicas.

A mala partiu ao grande trote... E dir-te-ei a verdade ou queres que minta? Não, hei de dizer-te a verdade. Pois senti como um alívio deses­perado, uma consolação cruel em a ver partir. Senti o que imagino que deve sentir um enfermo depois da operação dolorosa em que lhe ampu­taram parte do corpo com que já não podia viver e que era forçoso perder ou perder a vida.

Também deve ser assim a morte: um descanso apático e nulo de­pois de inexplicável padecer.

Era como morto que eu estava; não sofria pois.

E já não pensava em ti, já te não via na minha alma: eu não existia, estava ali.

Voltamos ao parque; apeei silenciosamente as minhas duas gentis companheiras, e eu fui só, a pé, com passo firme e resoluto para a minha habitação. Nenhuma delas me procurou reter, nem me disse na­da, nem tentou consolar-me. Para quê?

L. William R. chegava, na manhã seguinte, de uma de suas habi­tuais excursões a Londres. Veio ver-me assim que chegou, e trazer-me cartas de Portugal que eu esperava há muito. — Disse-me que partia no outro dia para Swansea, a terra de Gales para onde Laura fora; e que me encarregava de fazer companhia às duas filhas que ficavam sós.

A mim!..,

Estive três dias sem as ver: em todos três não fiz mais do que escrever Laura.

No quarto dia fui ao parque. Júlia deu um grito de alegria quando me viu: raro exemplo de exceção às formuladas regras que tiranizam a vida inglesa, que prescrevem até a cara com que se há de morrer, e tem graduado o tom em que se deve exalar o último suspiro.

Mas a natureza chega a triunfar às vezes até da própria etiqueta britânica.

Júlia cuidava que eu não queria voltar àquela casa, tinha-se resig­nado a não tornar a ver-me; não pôde reprimir a alegria que lhe causou a minha inesperada aparição.

Passamos todo o dia juntos e sós; quase todo se nos foi passeando no parque, ou sentados á sombra de seus espessos arvoredos, ou mirando-nos nas cristalinas águas de uma vasta represa povoada de aves aquáticas e rodeada daqueles imensos mantos de veludo verde de que perpetuamente se enfeita a terra inglesa e que só desaparecem quando vem o inverno estender-lhe por cima seus lençóis de neve.

Quis ver o que eu escrevia à irmã; dei-lhe a carta, leu-a, meditou-a, restituiu-ma sem dizer palavra.

Que horaspassamos neste silêncio, nesta eloqüente mudez que não vem senão do muito demais que a alma sente, do muito demais que diria se falasse!

À despedida, essa noite, deu-me uma bolsa de rede que Laura tinha estado fazendo para mim e que lhe deixara para me entregar. Senti que tinha dentro o que quer que fosse a bolsa, não quis exami­nar. Achei, quando voltei a casa, que era o falado cinto de vidrilhos pretos que eu tanto tinha admirado em cento baile onde fôramos juntos, e que Laura não deixara de por nunca mais em se vestindo de branco e que fizesse alguma toilette.

Ainda o conservo aquele cinto precioso, Joana; ainda o tenho, no meu tesoiro mais guardado, aquela jóia, aquela relíquia. E amo-te, e amo-te a ti só como realmente nunca amei nem poderei tornar a amar. Mas aquele cinto é uma sorte, um talismã, um amuleto em que está o meu destino.

Amei... isto é, amei.., pois sim, amei, já que não ha outra palavra nestas estúpidas línguas que falam os homens: pois amei outras mulhe­res, e nos dias de maior entusiasmo por elas, não dexei nunca de beijar devotamente aquele cinto, de o apertar sobre o meu coração, de me encomendar a ele — como o salteador napolitano se encomenda ao escapulário da Madona que traz ao peito, com as mãos ensangüentadas de matar, ou carregado do roubo que acaba de fazer,

Ai, Joana, não te digo eu que estou perdido, sem remédio, e que para mim não há, não pode haver salvação nunca?

Vivi assim dois meses. Laura não me escrevia: recebia as minhas cartas e respondia a Júlia: por este modo nos correspondíamos. Júlia era parte de nós, era uma porção do nosso amor, vivíamos nela a nossa vida. E já as contundia a ambas por tal modo no meu coração que me surpreendia não saber a qual queria mais. Júlia parecia feliz deste estado: eu era-o. Insensivelmente me habituei a ele, já não tinha saudades do passado. E quando se aproximou o casamento de Laura, que ela tinha de voltar de Gales, e que eu, fiel ao que prometera, devia pretex­tar negócio urgentíssimo em Londres que me obrigasse a ausentar-me até à sua partida para a Índia, eu tive uma pena, uma dificuldade em cumprir o que prometera que me envergonhava.

Parti porém, e ali me demorei um mês. Júlia escrevia-me todos os dias e eu a ela. Na véspera do dia fatal em que Laura ia ser de outro homem, Júlia escreveu-me estas palavras sós: — O nosso romance aca­bou; começa uma história séria. Laura manda-lhe o seu último adeus.

E nunca mais se escreveu nem se pronunciou o nome de Laura entre nós dois.

O galeão que me levava para o Oriente as ruínas de toda a minha esperança há muito que navegava; entrava outubro e o inverno inglês com suas mais ásperas, e neste ano tão precoces, severidades. Eu sentia-me morrer de tristeza e de isolamento no meio da populosa e turbulenta Londres. Júlia percebeu-o, e mandou-me voltar a - shire. Voltei.

XLVIII
Carta de Carlos a Joaninha: continua

O que eu senti quando, apesar de tão desfigurados pelos três altos de neve que os cobriam, comecei a reconhecer aqueles sítios da vizinhança do parque. e a confrontar as árvores, os pastos, os casais daque­les arredores!

Era outra a expressão de fisionomia da paisagem, mas as queridas feições eram as mesmas, e uma a uma lhas ia estremando.

Enfim o meu stage parou a entrada do parque, e eu tomei a pé pela longa avenida. Eram nove horas da manhã, e a manhã brumosa, fria, mas o tempo macio, não estava cru, segundo a expressiva frase do pais.

Por entre a névoa que me encobria a antiga mansão e envolvia as árvores circunstantes num sudário cinzento e melancólico, fui cami­nhando, quase pelo tato, até meia alameda talvez.

Parei a refletir na minha posição e no que eu ia ser naquela casa que de novo me abria suas portas hospitaleiras, quando, através da neblina brancacenta e onde ela era mais rara, descobri um vulto que vinha a mim de entre as árvores do parque.

O vulto era de mulher e parecia uma sombra, uma aparição fantás­tica em meio daquela cena misteriosa, só, triste,

Na distância figurava-se-me alto em demasia: Júlia não era nem podia ser; Júlia a mais diminuta e delicada de quantas fadas bonitas e graciosas têm trazido varinha do condão. Laura... ai! Laura tão longe estava dali... Quem seria pois? Só se fosse!... Quem?

Aquela elegância, aquele cabelo solto e anelado, aquele ar gentil não podia ser senão dela...

Dela, de quem?

Ainda te não falei, quase, da última das três belas irmãs que me encantavam, não lá descrevi, não tá nomeei pelo seu nome. Repugnava-me fazê-lo. Mas é preciso: custa-me, não há remédio.

Era Georgina...

Georgina, que tu conheces, Georgina que... era Georgina a que vinha a mim naquela — fatal ou feliz? — manhã; Georgina que de todas três era a que menos falava, que eu verdadeiramente menos co­nhecia.

Este meu coração, à força de ferido e de mal curado que tem sido, pressente e adivinha as mudanças de tempo com uma dor crônica que me dá. Pressenti não sei quê ao ver aproximar-se Georgina...

— Como foi bom em vir! Estou realmente feliz de o ver. E Júlia, a pobre Júlia, que alegria que vai ter, há de curá-la de todo.

— Pois quê! Júlia esta doente?

— Não o sabia!... Ai! não, bem sei que não: ela não lho quis dizer. Júlia está doente; mas não é de cuidado, Eu sempre quis adverti-lo antes que a visse, por isso calculei as horas do coche e vim para aqui esperá-lo.

Estas palavras eram simples, não tinham nada que me devesse impressionar extraordinariamente, e todavia eu sentia-me agitado como nunca me sentira. Olhava para Georgina como se a visse a primeira vez, e pasmava de a ver tão bela, tão interessante.

E uma situação de alma esta que não sei que a descrevessem ainda poetas nem romancistas: desprezam-na talvez, ou não a conhecem. Está sabido que as súbitas impressões causadas por um primeiro encontro sejam as mais interessantes, as mais poéticas.

Eu não nego o efeito teatral dessas primeiras e repentinas sensa­ções; mas sustento que interessa mais essoutra inesperada e estranha impressão que nos faz um objeto já conhecido, que viramos com indife­rença até ali, e que de repente se nos mostra tão outro do que sempre o tínhamos considerado...

Mas esta mulher é bela realmente! E eu que nunca o vi! Mas aque­les olhos são divinos! Onde tinha eu os meus até agora? Mas este ar, mas esta graça onde os tinha ela escondidos? etc. etc.

Vão-se gradualmente, vão-sepouco a pouco descobrindo perfeições, encantos; o sentimento que resulta é mil vezes mais profundo, mais fundado, sobretudo, que o das tais primeiras impressões tão cantadas e decantadas,

Que mais te direi depois disto? Entramos em casa, vi Júlia, falamos de Laura muito e muito. Mas eu já o não fiz com entusiasmo, com a admiração exclusiva com que dantes o fazia,..

Júlia recobrou, breve, a saúde, e com ela o equilíbrio doespírito. Renovou-se toda a alegria, todo o encanto das nossas conversações in­timas, dos nossos longos passeios. Laura lembrava com saudade; mas suavizava-se, embrandecia gradualmente aquela saudade.

Georgina, que até ali parecia empenhar-se em se deixar eclipsar pela irmã, agora, ausente ela, brilhava de toda a sua luz, em graça, em espirito, por um natural singelo e franco, por uma esquisita doçura de maneiras, de voz, de expressão, de tudo.

Júlia revia-se nela, e eu acabei pela adorar. Vergonha eterna sobre mim! mas é a verdade: quis-lhe mais do que a Laura, ou pareceu-me querer-lhe mais,.. que tanto vale.

Eu sei!... Não, não lhe queria tanto. Mas amei-a.

Amei, sim, e fui amado!

Três meses durou a minha felicidade. É o mais longo período de ventura que posso contar na vida. Falsa ventura, mas era.

A imperiosa lei da honra exigiu que nos separássemos, que partisse para os Açores. Fui. Ninguém sacrificou mais, ninguém deu tanto como eu para aquela expedição. A história falará de muitos serviços, de muit­as dedicações. Quem saberá nunca desta?

A história é uma tola.

Eu não posso abrir um livro de histórias que me não ria. Sobretudo as ponderações e adivinhações dos historiadores acho-as de um cômico irresistível. O que sabem eles das causas, dos motivos, do valor e impor­tância de quase todos os fatos que recontam! .

Ainda não sei como parti, como cheguei, como vivi os primeiros tempos da minha estada naquele escolho no meio do mar chamado a Ilha Terceira, onde se tinham refugiado as pobres relíquias do partido constitucional.

Habituei-me por fim. A que se não afaz o homem?

Levaram-me uma tarde à grade de um convento de freiras que ai havia. O meu ar triste, distraído, indiferente, excitou a piedade das boas monjas. Uma delas, jovem, ardente, apaixonada, quis tomar a empresa de me consolar. Não o conseguiu. coitada! O meu coração estava em — shire, em Inglaterra, estava na Índia, estava no vale de Santarém.

Pelo mundo em pedaços repartido,

estava em toda a parte, menos ali, que nada dele estava nem podia estar.

Era Soledade que se chamava a freirinha, e como o seu nome ficou. Disseram o que quiseram os faladores que nunca faltam, mas mentiram como mentem quase sempre, enganaram-se como se enga­nam sempre.

Eu não amei a Soledade.

E contudo lembro-me dela com pena, com simpatia... Se eu sou feito assim, meu Deus, e assim hei de morrer!

Viemos para Portugal: e o resto agora da minha história sabes tu.

Cheguei por fim ao nosso vale, todo o passado me esqueceu assim que te vi. Amei-te... não, não é verdade assim. Conheci, mal que te vi entre aquelas árvores, à luz das estrelas, conheci que era a ti só que eu tinha amado sempre, que para ti nascera, que teu só devia ser, se eu ainda tivera coração para te dar, se a minha alma fosse capaz. fosse digna de juntar-se com essa alma de anjo que em ti habita.

Não é, Joana; bem o vês, bem o sentes, como eu o sinto e o vejo.

Eu sim, tinha nascido para gozar as doçuras da paz e da felicidade doméstica; fui criado, estou certo, para a glória tranqüila, para as deli­cias modestas de um bom pai de família.

Mas não o quis a minha estrela. Embriagou-se de poesia a minha imaginação e perdeu-se: não me recobro mais. A mulher que me amar há de ser infeliz por força; a que me entregar o seu destino, há de vê-lo perdido,

Não quero, não posso, não devo amar a ninguém mais.

A desolação e o opróbrio entraram no seio da nossa família. Eu renuncio para sempre ao lar doméstico, a tudo quanto quis, a tudo quanto posso querer. Deus que me castigue, se ousa fazer uma injusti­ça, porque eu não me fiz o que sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade que me persegue não é obra minha.

Adeus Joana, adeus prima querida, adeus irmã da minha alma! Tu acompanha nossa avó, tu consola esse infeliz que é o autor da sua e das nossas desgraças. Tu, sim, que podes, e esquece-me.

Eu, que nem morrer já posso, que vejo terminar desgraçadamente esta guerra no único momento em que a podia abençoar, em que ela podia felicitar-me com uma bala que me mandasse aqui, bem direita ao coração, eu que farei?

Creio que me vou fazer homem político, falar muito na pátria com que me não importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e quem sabe?... talvez darei por fim em agiota, que é a única vida de emoções para quem já não pode ter outras

Adeus, minha Joana, minha adorada Joana, pela última vez, adeus.

XLIX
De como Carlos se fez barão. — Fim da história de Joaninha. — Georgina abadessa. Juízo de Frei Dinis sobre a questão das frades e dos barões. — Que não pode tornar a ser o que foi, mas muito menos pode ser o que é. O que há de ser, Deus o sabe e proverá. — Vai o A. dormir ao Cartaxo. - Sonho que tem aí. — Volta a Lisboa. — Caminhos de ferro e de papel. — Conclusão da viagem e deste livro.

Acabei de ler a carta de Carlos, entreguei-a a Frei Dinis em silên­cio. Ele tornou-me:

— Leu?

— Li.

— Que mais quer saber? Sinto que lhe posso dizer tudo: não o conheço, mas...

— Mas deve conhecer-me por um homem que se interessa vivamente...

— Em quê! Nas eleições, na agiotagem, nos bens nacionais?

— Não, senhor. Fui camarada de Carlos, não o vejo há muitos anos e...

— Nem o conhecia se o visse agora: engordou, enriqueceu, e é barão...

— Barão!

— É barão, e vai ser deputado qualquer dia.

— Que transformação! como se fez isso santo Deus! E Joaninha? e Georgina?

— Joaninha enlouqueceu e morreu. Georgina é abadessa de um convento em Inglaterra.

— Abadessa?

— Sim. Converteu-se a comunhão católica; era rica, fundou um convento em -shire, e lá está servindo a Deus.

— E esta pobre senhora, a avó de Joaninha?

— Aí está como a vê, morta de alma para tudo. Não vê, não ou­ve, não fala, e não conhece ninguém. Joaninha veio morrer aqui nesta fatal casa do vale, eu estava ausente, expirou nos braços dela e de Georgina. Desde esse instante a avô caiu naquele estado. Esta morta, e não espero aqui senão a dissolução do corpo para o enterrar, se eu não for primeiro; e Deus queira que não! Quem há de tomar conta dela, ter caridade com a pobre demente? Mas depois... oh! depois,,. espero no Senhor que se compadeça enfim de tanto sofrer e me leve para si.

— Mas Carlos?!

— Carlos é barão: no lho disse já?

— Mas por ser barão?...

— Não sabe o que é ser barão?

— Oh se sei! Tão poucos temos nós?

— Pois barão é o sucedâneo dos...

— Dos frades... Ruim substituição!

— Vi um dos tais papéis liberais em que isso vinha: e é a única coisa que leio dessas há muitos anos, Mas fizeram-mo ler.

— E que lhe pareceu?

— Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos.

— Erramos ambos.

— Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era: — mas mito menos ainda pode ser o que é. O que há de ser, não sei. Deus proverá.

Dito isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviário e pôs-se a rezar. A velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais atenção nem pareceu cônscio da minha estada ali.

Sentia-me como na presença da morte e aterrei-me.

Fiz um esforço sobre mim mesmo, fui deliberadamente ao meu ca­valo, montei, piquei desesperadamente de esporas, e não parei senão no Cartaxo.

Encontrei ali os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fora da vila á hospedeira casa do Sr. L. S.

Rimos e folgamos até alta noite: o resto dormimos a sono solto.

Mas eu sonhei com o frade, com a velha — e com uma enorme constelação de barões que luziam num céu de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas, de todas as cores e matizes possíveis. Eram milhões e milhões de milhões...

Nunca vi tanto milhão, nem ouvi falar de tanta riqueza senão nas Mil e uma noites.

Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta.

Meti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papéis!

Parti para Lisboa cheio de agoiros, de enguiços e de tristes pressentimentos.

O vapor vinha quase vazio, mas nem por isso andou mais depres­sa.

Eram boas cinco horas da tarde quando desembarcamos no Ter­reiro do Paço.

Assim terminou a minha viagem a Santarém; e assim termina este livro.

Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.

Se assim pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portu­gal fora, em busca de histórias para te contar.

Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.

Escusada é a jura, porém.

Se as estradas fossem de papel, fá-la-iam, não digo que não.

Mas de metal!

Que tenha o governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.

* * *

Nas Viagens aparecem alguns nomes de personalidades da época, mas apenas por iniciais ou em simples menção não identificada. São elas:

O amigo a cujas instâncias se deveu a viagem a Santarém: Passos Manuel.

C. da T. - Conde da Taipa, Gastão da Câmara Coutinho Pereira de Sande,

L. S. - Luís Teixeira de Sampaio, 1º visconde do Cartaxo.

Marquês do F. - 1.º marquês do Faial, Domingos Antônio de Sousa Coutinho.

C. J. X. - Cândido José Xavier, conhecido pelo "Pernas de égua". estadista liberal desafeto a Garrett,

O mestre J. P. (ou mestre P.) - Joaquim Pedro, ferreiro do Carta­xo.

Sr. D. (ou o velho D.) - Dâmaso Xavier Santos. lavrador do Car­taxo.

C. do S. - Conde do Sobral, Hermano José Braancamp de AI­meida Castelo Branco.

O Sr. M. P. Manuel Passos (Passos Manuel).

Barão do P. - Barão do Pombalinho, Antônio de Araújo Vasques da Cunha Portocarrero.

Barão de A. - Barão de Almeirim, Manuel Nunes Freire da Rocha. Baronesa de A. - Baronesa de Almeirim, Luisa Joana Braancamp.

Notas do autor
1 ) É visível alusão ao popular e inimitável opúsculo e Xavier de Maistre, Voyage autor de ma chambre, que decerto foi principiado a escrever em Turim, e que muitos supõem que fosse concluído em São Petersburgo.

2) É puramente histórico isto; e também é verdade que em grande parte daqui se originou a perseguição brutal que sofreu o A. dali a poucos meses.

3) Regata chamavam, e não sei se chamam ainda, em Veneza, às carreiras de barcos apostados ao desafio A palavra e a coisa introduziu-se em Inglaterra, onde é moda e popularíssima.

4) Estes versos são uma espécie de paródia dos famosos fragmentos de Alceu, de que só existe memória nos escólios que nos conservou Eustáquio. Nas Flores sem frutos, pág.56, vem a tradução daquele belo fragmento.

5) Os protocolos das comissões de inquérito de há oito para dez a esta parte, sobre o estado das classes trabalhadoras e indigentes em Inglaterra, é a prova real dos grandes cálculos da economia política, ciência que eu espero em Deus que se há de desacreditar muito cedo.

6) A tradução chegada destes memoráveis versos de Shakespeare é:

Há mais coisas no céu, há mais na terra

Do que sonha tua vã filosofia

7) Personagens, bem conhecidos geralmente, do romance tão popular de Eug. Sue, Os Mistérios de Paris.

8) Addison, o poeta, foi ministro da rainha Ana de Inglaterra, e membro do célebre gabinete chamado de All-isits

9) Um dos dois cemitérios de Lisboa — seja dito para a inteligência do leitor provinciano — chama-se dos Prazeres, por uma ermida de N. S.ª que ali existia com esta invocação desde antes do terreno ter o presente destino. É notável a coincidência dos nomes.

10) É fácil ver que o interlocutor deste diálogo conhecia esse curioso personagem da história do Condestável, não pelas crônicas, mas pelo drama que tem o seu nome.

11) O convento que tem este nome em Paris, é casa de educação de meninas nobres e recolhimento de senhoras também.

12) Antônio Ferreira, que viveu no fim do século passado, princípio deste, modelava em barro com a mesma graça e naturalidade flamenga, com que pintava o Morgado de Setúbal; as suas pequenas figurinhas são tão estimadas pelos entendedores como os melhores biscuits de Sévres e de Saxônia antiga.

13) A fábula daquela ave imortal teve origem nas idades obscuras da Europa quando o grego era ignorado. O que os antigos diziam da fênix, palmeira em grego, tomaram nossos bárbaros avós por dito de uma passarola com que os outros nunca sonharam.

14) Coleção de antigas rapsódias germânicas contendo o maravilhoso e poético de suas origens históricas e que é para os povos teutônicos o que era a Ilíada para os helenos. Só se não sabe o nome do Homero alemão que as redigiu e uniformizou como hoje se acham.

15) Fundo baixo do Tejo, ao longo da praia de Santos, que tem este nome, é onde vão apodrecer as carcaças dos navios velhos e já inúteis.

16) Fender se chama em inglês a pequena e baixa teia de metal que de­fende o fogão nas salas, para que não caiam brasas nos sobrados. Descansam nele os pés naturalmente quando a gente se está confortavelmente aquecendo em liberdade

17) Tem-se disputado muito sobre qual seja a bebida espirituosa celebrada por Shakespeare tantas vezes com este nome. A opinião mais aceita é que fosse boa e velha aguardente de França.

18) O grito de guerra comum a todas as nações cristãs espanholas era Santiago! Quando na acessão da casa de Avie nos aliamos intimamente com a

Inglaterra contra Castela, começamos a invocar S. Jorge.

19) Singela e original expressão do santo arcebispo numa carta de convite a

seu amigo. Fez-se como devia ser, proverbial esta frase.

20) Transcrevemos aqui o original alemão para se avaliar o que fica dito no texto.

Ihr naht euch wíeder, schwankende Gestalden,

Die frúh sich einst dem trüben Blick qezeigt.

Versuch ich tochi euch desmol fest zo halten?

Fúbi' ich mcm Herz nocb jenem Wahn geneígt?

Ihr drdngt euch ai! nun gur, so rnàgt ihr wolten,

Wie ihr ans Dunst unci Nebe? um mích steigt,

Mem Bussenjúhjt sichtju9endfích erschúttcrt

Vom Zauberhauch, der eureu Zug umwítwrt.

fhr bnngt mit euch de Bílder /roher Tape,

Und manche hebe Schatten sreigen auf;

Gfeich erner halbverk!ungen Soge

Komrnt erste Lieb' und Freunci/chafi mít herauf;

Der Schmerz wind fleu, es wjederholt de klage

Des Jebens Jabvnntísch Írren Louf

Und nennt de Guten, und de schóne Stunden

Vom GJúck getãuscht, vor mir himuesseschwunden.

21) Na sua obra intitulada Les Arts en Portugal, Paris, 1846

22) Centro e barbas são qualificações e nomes de empregos teatrais.

FIM

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