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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Prova-se como o velho Camões não teve outro remédio senão misturar o maravilhoso da mitologia com o do Cristianismo. — Dá-se razão, e tira-se depois ao Padre José Agostinho. — No meio destas dissertações acadêmico-literárias vem o A. a descobrir que para tudo é preciso Ter f[é neste mundo. Diz-se neste mundo, porque, quanto ao outro já era sabido. — Os Lusiadas, o Fausto e a Divina Comédia — Desgraça do Camões em ter nascido antes do Romantismo. — Mostra-se como a Estige e o Cocito sempre são melhores sítios que o Inferno e o Purgatório. — Vai o A. em procura do Marquês de Pombal, e dá com ele nas ilhas Beatas do poeta Alceu. — Partida de uíste entre os ilustres finados. — Compaixão do Marquês pelos pobres homens de Ricardo Smith e J.B. Say. — Resposta dele e da sua luneta às perguntas peralvilhas do A. — Chegada a este mundo e ao Cartaxo.

O mais notável, e não sei se diga, se continuarei ao menos dizer, o mais indesculpável defeito que até aqui esgravataram os críticos e zoilos na Ilíada dos povos modernos, os imortais Lusíadas, é sem dúvida a heterogênea e heterodoxa mistura de teologia com a mitologia, do maravilhoso alegórico do paganismo, com os graves símbolos do Cristianismo. A falar a verdade, e por mais figas que a gente queira fazer ao Padre José Agostinho — ainda assim! ver o Padre Baco revestido in pontificalibus diante de um retábulo, não me lembra de que santo, dizendo o seu dominus vobuscum provavelmente a algum acólito bacante ou coribante, que lhe responde o et cum spiritu tuo!... não se pode; é um que realmente... E então aquele famoso conceito com que ele acaba, digno da Fênix Renascida:

O falso Deus adora o verdadeiro!

Desde que entendo, que leio, que admiro Os Lusíadas, enterneço-me, choro, ensoberbeço-me com a maior obra de engenho que apareceu no mundo, desde a Divina Comédia até ao Fausto.

O italiano tinha em fé em Deus, o alemão no cepticismo, o português na sua pátria. É preciso crer em alguma coisa para ser grande — não só poeta — grande seja no que for. Uma Brízida velha que eu tive quando era pequeno, era famosa cronista de histórias da carochinha, porque sinceramente cria em bruxas. Napoleão cria na sua estrela, Lafayette creu na república-rei de Luís Fillipe; e para que ousemos também celebrare doméstica facta, todos os nossos grandes homens ainda hoje crêem, um na Junta do Crédito, outro nas classes inativas, outro no mestre Adonirão, outro finalmente na beleza e na realidade do sistema constitucional que felizmente nos rege.

Mas essas crenças são para os que se fizeram grandes com elas. A um pobre homem o que lhe fica para crer? Eu, apesar dos críticos ainda creio no nosso Camões; sempre cri.

E contudo, desde a idade da inocência em que tanto me divertiam aquelas batalhas, aquelas aventuras, aquelas histórias de amores, aquelas cenas todas, tão naturais, tão bem pintadas — até esta fatal idade da experiência, idade prosaica em que as mais belas criações do espírito parecem macaquices diante das realidades do mundo, e os nobres movimentos do coração quimeras de entusiastas, até esta idade de saudades do passado e esperanças no futuro, mas sem gozos no presente, em que o amor da pátria (também isto será fantasmagoria?) e o sentimento íntimo do belo me dão na leitura dos Lusíadas outro deleite diverso mas não inferior ao que noutro tempo me deram — eu senti sempre aquele grande defeito do nosso grande poema; e nunca pude, por mais que buscasse, achar-lhe, justificação não digo — nem sequer desculpa.

Mas até morrer aprender, diz o adágio: e assim é. E também é aforismo de moral, aplicável outrossim a coisas literárias: que para a gente achar a desculpa aos defeitos alheios, é considerar — é pôr-se uma pessoa nas mesmas circunstâncias, ver-se envolvido nas mesmas dificuldades.

Aqui estou eu agora dando toda a desculpa ao pobre Camões, com vontade de o justificar, e pronto (assim são as caridades deste mundo) a sair a campo de lança em riste e a quebrá-la com todo antagonista que por aquele fraco o atacar. E por que será isto? Porque chegou a minha hora; e, si parva licet componere magnis ( a bossa proeminente hoje é a latina), aqui me acho com este meu capítulo nas mesmas dificuldades em que o nosso bardo se viu com o seu poema.

Já preveni as observações com o texto acima: bem sei quem era Camões e quem sou eu; mas trata-se da entalação, que é a mesma apesar da diferença dos entalados. o Autor dos Lusíadas viu-se entalado entre as crenças dos seu país e as brilhantes tradições da poesia clássica que tinha por mestra e modelo.

Não havia então românticos nem romantismo, o século estava muito atrasado. As odes de Vítor Hugo não tinham ainda desbancado as de Horácio; achavam-se mais líricos e mais poéticos os esconjuros de Canídia do que os pesadelos de um enforcado no oratório; chorava-se com as Tristes de Ovídio, porque se não lagrimejava com as Meditações de Lamartine. Andrômaca despedindo-se de Heitor às portas de Tróia, Príamo suplicante aos pés do matador de seu filho, Helena lutando entre o remorso do seu crime e o amor de Páris, não tinham sido ainda eclipsados pelas declamações da mãe Eva às grades do paraíso terreal. O combate de Aquiles e Heitor, das hostes argivas com as troianas, não tinha sido metido num chinelo pelas batalhas campais dos anjos bons e anjos maus à metralhada por essas nuvens. Dido chorando por Enéias não tinha sido reduzida a donzela choramingas de Alfama carpindo pelo seu Manel que vai para a Índia.

Realmente o século estava muito atrasado: Milton não se tinha ainda sentado no lugar de Homero, Shakespeare no de Eurípedes, e Lorde Byron acima de todos; enfim não estava ainda anglizado o mundo, portanto a marcha do intelecto no mesmo terreno, é tudo uma ,séria.

Ora pois o nosso Camões, criador da epopéia, e — depois de Dante — da poesia moderna, viu-se atrapalhado; misturou a sua crença religiosa com o seu credo poético e fez, tranchons le mot, uma sensaboria.

E aqui direi eu com o vate Elmano:

Camões, grande Camões, quão semelhante

Acho teu fado ao meu quando os cotejo

Vou fazer outra sensaboria, eu, neste belo capítulo da minha obra prima. Que remédio! Preciso falar com um ilustre finado, preciso de evocar a sombra de um grande gênio que hoje habita com os mortos. E aonde irei eu? Ao inferno? Espero que a divina justiça se apiedasse dele na hora dos últimos arrependimentos. Ao purgatório, ao empíreo? Apesar do exemplo da Divina Comédia, não me atrevo a fazer comédias com tais lugares de cena, — e não sei, não gosto de brincar com essas coisas.

Não lhe vejo remédio senão recorrer ao bem parado dos Elísios, da Estige, do Cocito e seu termo: são terrenos neutros em que se pode parlamentar com os mortos sem comprometimento sério e...

Eis-me aí no erro de Camões — e nas unhas dos críticos: e as zagunchadas a ferver em cima de mim, que fiz, que aconteci...

Mas, senhores, ponderem, venham cá: o que há de um homem fazer? O Dante não sei que gíria teve que batizou Públio Vírgilio Marão para lhe servir de cicerone nas regiões do inferno, do paraíso e do purgatório cristão, e teve tão boa fortuna que nem o queimou a Inquisição, nem o descompôs a Crusca, nem sequer o mutilaram os censores, nem o perseguiram delegados por abuso de liberdade de imprensa, nem o mandaram para os dignos pares... Não se tinham ainda descoberto as mangações liberais que se usam hoje: e as cartas que o povo tinha era a liberdade ganha e sustentada à ponta de espada, com muito coração e poucas palavras, muito patriotismo, poucas lei... e menos relatórios. Não havia em Florença nem gazeta para louvar as tolices dos ministros, nem ministros para pagar as tolices da gazeta.

O Dante foi proscrito e exilado, mas não se ficou a escrever, deu catanada que se regalou nos inimigos da liberdade da sua pátria.

Quem dera cá um batalhão de poetas como aquele!

Que fosse porém um triste vate de hoje escrever no século das luzes o que escrevia Dante no século das trevas! Os próprios filósofos gritavam: Que escândalo! Ateus professos clamavam contra a irreverência; gentes que não têm religião, nem a de Mafona, bradavam pela religião: entravam a pôr carapuças nas cabeças uns dos outros, caiam depois todos sobre o poeta, e, se o não pudessem enforcar, pelo menos declaravam-no republicano, que dizem eles que é uma injúria muito grande.

Nada! viva o nosso Camões e o seu maravilhoso mistifório; é a mais cômoda invenção deste mundo; vou-me com ela, e ralhe a crítica quanto quiser.

Quero procurar no reino as sombras não menor pessoa que o Marques de Pombal; tenho e lhe fazer uma pergunta séria antes chegar ao Cartaxo. E nós já vamos por entre as ricas vinhas que o circundam como uma zona de verdura e alegria. Depressa o ramo de oiro que me abra ao pensamento as portas fatais, — depressa a untuosa sopetarra com que hei de atirar às três gargantas do canzarrão. Vamos...

Mas em que distrito daquelas regiões acharei eu o primeiro-ministro de el-rei D. José? Por onde está Ixião e Tântalo, por onde demora Sísifo e outros manganões que tais? Não, esse é um bairro muito triste, e arrisca-se a Ter por administrador algum escandecido que me atice as orelhas.

Nos Elísios com o pai Anquises e outros barbaças clássicos do mesmo jaez? Eu sei? também isso não. Há de ser naquelas ilhas bem aventuradas de que fala o poeta Alceu e onde ele pôs a passear, por eternas verduras, as almas tiranicidas de Harmódio e Aristogíton...

Oh! esta agora!... Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, Marquês de Pombal, de companhia com seus inimigos políticos!... Aí é que se enganam; não há amigos nem inimigos políticos em se largando o mando e as pretensões a ele. Ora, passado os umbrais da eternidade, é de fé que se não pensa mais nisso; C.J. X 1, que morreu a assinar uma portaria, já tinha largado a pena quando chegou ali pelos Prazeres;(9) quanto mais !...

O homem há de estar nas ilhas beatas. Vamos lá...

E ei-lo ali; lá está o bom do marquês a jogar o uíste com o Barão de Bidefeld, com o Imperador Leopoldo e com o poeta Dinis. A partida deve ser interessante, talvez aposte essa gente toda — esses manes todos que estão à roda; Que cara fez o marquês a uma finadinho que lhe foi meter o nariz nas cartas! Quem havia de ser! O intrometido de M. de Talleyrand. Estava-lhe caindo. Mas não viu nada: o nobre Marquês sempre soube esconder o seu jogo.

A mim é que ele já me viu.

— Que diz? Ah! ... sim senhor, sou português; e venho fazer uma pergunta a V.Ex.ª, esclarecer-me sobre um ponto importante.

Deitou-me a tremenda luneta.

— Para que mandou V.Ex.ª arrancar as vinhas do Ribatejo?

Apertou a luneta no sobrolho e sorriu-se.

— Elas aí estão centuplicadas, que até já invadiram o pinhal da Azambuja. Fez V.Ex.ª um despotismo inútil, e agora...

— Agora quem bebe por lá todo esse vinho?

Não sabia o que havia de responder. Ele sacudiu a cabeleira de anéis, virou-me as costas, deu o braço a Colbert, passou por pé de Ricardo Smith e de J. Batista Say, que estavam a disputar, encolheu os ombros em ar de compaixão, e foi-se por uma alameda muito viçosa que ia por aqueles deliciosos jardins dentro, e sumiu-se da nossa vista.

Eu surdi cá neste mundo, e achei-me em cima da azêmola, ao pé do grande café do Cartaxo.

VII
Reflexões importantes sobre o Bois de Boulogne, as carruagens de molas, Tortoni, e o café do Cartaxo. — Dos cafés em geral, e de como são característicos da civilização de um país. — O Alfageme. — Hecatombe imolada pelo A. — História do Cartaxo. — Demonstra-se como a Grã-Bretanha deveu sempre a sua força e toda a sua gl[ória a Portugal. — Shakespeare e Laffite, Milton e Châteaux-Margaux, Nelson e o Príncipe de Joinville. — Prova-se evidentemente que M. Guizot é a ruína de Albion e do Cartaxo.

Voltar à meia noite do Bois de Boulogne — o bosque por excelência , — descer, entre as nuvens de poeira, o longo estádio dos Campos Elísios , entrever, na rápida carreira, o obelisco de Lúxor, as árvores das Tulherias, a coluna da praça Vandome, a magnificência heteróclita da Madalena, e enfim sentir parar, de uma sofreada magistral, os dois possantes ingleses que nos trouxeram quase de um fôlego até ao bulevar de Gand; aí entreabrir molemente os olhos, levantando meio corpo dos regalados coxins de seda, e dizer: Ah! estamos em Tortoni... que delícia um sorvete com este calor! — é seguramente, é dos prazeres maiores desse mundo, sente-se a gente viver; é meia hora de existência que vale dez anos de ser rei em qualquer outra parte do mundo.

Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e dissabores deste mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado: o prazer de chegar por aquele modo a Tortoni, o apear da elegante caleche balançada nas mais suaves molas que fabricasse arte inglesa do puro aço de Suécia, não alcança, não se compara ao prazer e consolação da alma e corpo que eu senti ao apear-me da minha choiteira mula à porta do grande café do Cartaxo.

Fazem idéia do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, não saem, se não vêem mundo esta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o teatro de S. Carlos, como hão de alargar a esfera de seus conhecimentos, desenvolver o espírito, chegar à altura do século?

Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos à dama nova, ide que não prestais para nada, meus queridos lisboetas; ou discuti os deslavados horrores de algum melodrama velho que fugiu assobiado da Porte Saint-Martin e veio esconder-se na rua dos Condes. Também podeis ir aos Toiros — estão embolados, não há perigo...

Viajar?... qual viajar! até a Cova da Piedade, quando muito, em dia que lá haja cavalinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare.

Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.

O café é uma das feições mais características de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido o país em que está, o seu governo, as suas leis, os seus costumes, a sua religião.

Levem-me de olhos tapados onde quiserem, não me desvendem senão no café; e protesto-lhes que em menos de dez minutos lhes digo a terra em que estou se for país sublunar.

Nós entramos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo, e nunca se encruzou turco em divã de seda do mais esplêndido café de Constantinopla, com tanto gozo de alma e satisfação de corpo, como nós nos sentamos nas duras e ásperas tábuas das esguias banquetas mal sarapintadas que ornam o magnífico estabelecimento bordalengo.

Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade clássica: será um paralelogramo pouco maior que a minha alcova; à esquerda duas mesas de pinho, à direita o mostrador envidraçado onde campeiam as garrafas obrigadas de licor de amêndoa, de canela, de cravo. Pendem do teto laboriosamente arrendados por não vulgar tesoira, os pingentes de papel, convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina uma frescura admirável naquele recinto.

Sentamo-nos, respiramos largo, e entramos em conversa com o dono da casa, homem de trinta a quarenta anos, de fisionomia esperta e simpática, e sem nada de repugnante vilão ruim que é tão usual de encontrar por semelhantes lugares da nossa terra.

— Então que novidades há por cá pelo Cartaxo, patrão?

— Novidades! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa. Aí está a Revolução de ontem...

— Jornais, meu caro amigo! Vimos fartos disso. Diga-nos alguma coisa da terra. Que faz por cá o ...

— O mestre J.P., o Alfageme?

— Como assim o Alfageme?

— Chama-lhe o Alfageme ao mestre J.P.; pois então! Uns senhores de Lisboa que aí estiveram em casa do Sr. D. puseram-lhe esse nome, que a gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que agora já ninguém lhe chama senão o Alfageme. Mas, quanto a mim, ou ele não é Alfageme, ou não o há de ser por muito tempo. Não é aquele não. Eu bem me entendo.

A conversação tornava-se interessante, especialmente para mim: quisemos aprofundar o caso.

— Muito me conta, Sr. Patrão! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe que é coisa de...

— Parece-me o que é, e o que há de parecer a todo mundo. E algumas coisas sabemos cá no Cartaxo, do que vai por ele. O verdadeiro Alfageme diz que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha, na Ribeira de Santarém; e o que foi um homem capaz, que punia pelo povo, e que não queria saber de partidos, (10) e que dizia ele: “Rei que nos enforque, e papa que nos excomungue, nunca há de faltar. Assim, deixar os outros brigar, trabalhemos nós e ganhemos nossa vida”. Mas que estrangeiros que não queria, que esta terra que era nossa e com a nossa gente se devia governar. E mais coisas assim: e que por fim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha. Mas que lhe valeu o Condestável e o não deixou arrasar, por era homem de bem e fidalgo às direitas. Pois não é assim que foi?

— É assim, meu amigo. Mas então daí?

— Então daí o que se tira é que quando havia fidalgos como o Santo Condestável também havia Alfagemes como o de Santarém. E mais nada.

— Perfeitamente. Mas por chamaram ao mestre P. o Alfageme de Cartaxo?

— Eu lhes digo aos senhores: o homem nem era assim, nem era assado. Falava bem, tinha sua lábia com o povo. Daí fez-se juiz, pôs por aí suas coisas a direito. — Deus sabe as que ele entortou também!... ganhou nome no povo, e agora faz dele o que quer. Se lhe der sempre para bem, bom será. Os senhores não tomam nada?

O bom do homem visivelmente não queria falar mais: e não devíamos importuná-lo. Fizemos o sacrifício do bom número de limões que esprememos em profundas taças — vulgo, copos de canada — e com água de açúcar, oferecemos as devidas libações ao gênio do lugar.

Infelizmente o sacrifício não foi de todo incruento. Muitas hecatombes de mirmidões caíram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que não sei se agradou à divindade, mas que enjoou terrivelmente aos sacerdotes.

Saímos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e alegria do Ribatejo. Já ele sabia da nossa chegada, e vinha no caminho para nos abraçar.

Fomos dar, juntos, uma volta pela terra.

É das povoações mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, asseada, alegre; parece o bairro suburbano de uma cidade.

Não há aqui monumentos, não há aqui história antiga; a terra é nova, e a sua prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta anos, desde que seu vinho começou a ter fama. Já descaída do que foi pela estagnação daquele comércio, ainda é contudo a melhor coisa da Borda d’Água.

Não tem história antiga, disse; mas tem-na moderna e importantíssima.

Que memórias aqui não ficaram da guerra peninsular! Que espantosas borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generais, os mais distintos militares da nossa antiga e fiel aliada, que ainda então, ao menos, nos bebia o vinho!

Hoje nem isso!... hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordéus e as acerbas limonadas de Borgonha. Quem tal diria da conservativa Albion! Como pode uma leal goela britânica, rascada pelos ácidos anárquicos daquelas vinagretas francesas, entoar devidamente o God Save the King em um toast nacional! Como, sem Porto ou Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um súdito britânico erguer a voz, naquela harmoniosa desafinação insular que lhe é própria e que faz parte do seu respeitável caráter nacional — faz; não se riam: o inglês não canta senão quando bebe... aliás quando está BEBIDO. Nisi potus ad arma ruisse. Inverta: Nisi potus in cantum prorumpisse... E pois, como há de ele assim bebido erguer a voz naquele sublime e tremendo hino popular Rule Britannia!.

Bebei, bebei bem zurrapa francesa, meus amigos ingleses; bebei, bebei a peso de oiro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Alemanha; chamai-lhe, para vos iludir, chamai-lhe hoc, chamai-lhe hic, chamai-lhe o hic haec hoc todo, se vos dá gosto... que em poucos anos veremos o estado de acetato a que há de ficar reduzido o vosso caráter nacional.

Ó gente cega a quem Deus quer perder! Pois não vedes que não sois nada sem nós, que sem o nosso álcool, donde vos vinha espírito, ciência, valor, ides cair infalivelmente na antiga e preguiçosa rudeza saxônia!

Dessas traidoras praias de França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa índole e da vossa força, não tardará que também vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça arrepender, mais tarde, do criminoso erro que hoje cometeis, ó insulares sem fé, em abandonar a nossa aliança. A nossa aliança, sim, a nossa poderosa aliança, sem a qual não sois nada.

O que é um inglês sem Porto ou Madeira... sem Carcavelos ou Cartaxo?

Que se inspirasse Shakespeare com Laffitte, Milton com Château-Margaux — o chanceler Bacon que se diluísse no melhor Borgonha... e veríamos os acídulos versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam. Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg: Byron anates beberia gim, antes água do Tâmisa, ou do Pamiso, do que essas escorreduras das áreas de Bordéus.

Tirai-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguém mais teme que torneis a ter outro Nelson. Entra nos planos do Príncipe de Joinville fazer-vos beber da sua zurrapa; são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jogo.

É M. Guizot quem perde a Inglaterra com sua aliança; e também perde o Cartaxo. Por isso eu já não quero nada com os doutrinários.

Há doze anos tornou o Cartaxo a figuras conspicuamente na história de Portugal. Aqui, nas longas e terríveis lutas da última guerra de sucessão, esteve muito tempo o quartel general do Marquês de Saldanha.

Alguns ditirambos se fizeram; alguns ecos das antigas canções báquicas do tempo da guerra peninsular ainda acordaram ao som dos hinos constitucionais.

Mas o sistema liberal, tirada a época das eleições, não é grande coisa para a indústria vinhateira, dizem. Eu não o creio, porém, e tenho minhas boas razões, que ficam para outra vez.

VIII

Saída do Cartaxo.— A charneca. Perigo iminente em que o A. se acha de dar em poeta e fazer versos.— Última revista do imperador D. Pedro ao exército liberal. – Batalha de Almoster.— Waterloo. — Declara o A. solenemente que não é filósofo e chega à ponte da Asseca.

Eram dadas cinco da tarde, a calma declinava, montamos a cavalo, e cortamos por entre os viçosos pâmpanos que são a glória e a beleza do Cartaxo; as mulinhas tinham refrescado e tomado ânimo; breve, nos achamos em plena charneca.

Bela e vasta planície! Desafogada dos raios do Sol, como ela se desenha aí no horizonte tão suavemente! que delicioso aroma selvagem que exalam estas plantas, acres e tenazes de vida, que a cobrem, e que resistem verdes e viçosas a um sol português de julho!

A doçura que mete na alma a vista refrigerante de uma jovem seara do Ribatejo nos primeiros dias de abril, ondulando lascivamente com a brisa temperada da Primavera, — a amenidade bucólica de um campo minhoto de milho, à hora da rega, por meados de agosto, a ver-se-lhe pular os caules com a água que lhe anda por pé, e à roda as carvalheiras classicamente desposadas com a vide coberta de racimos pretos — são ambos esses quadros de uma poesia tão graciosa e cheia de mimo, que nunca a dei por bem traduzida nos melhores versos de Teócrito ou de Virgílio, nas melhores prosas de Gessner ou de Rodrigues Lobo.

A majestade sombria e solene de um bosque antigo e copado, o silêncio e escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitário de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. Medita-se ali por força; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que eles caem... e Deus, a eternidade — as primitivas e inatas idéias do homem – ficam únicas no seu pensamento...

É assim. Mas um rochedo em que me eu sente ao pôr do sol na gandra erma e selvagem, vestida apenas de pastio bravo, baixo e tosquiado rente pela boca do gado — diz-me coisas da terra e do céu que nenhum outro espetáculo me diz na natureza. Há um vago, um indeciso, um vaporoso naquele quadro que não tem nenhum outro.

Não é o sublime da montanha, nem o augusto do bosque, nem o ameno do vale. Não há aí nada que se determine bem, que se possa definir positivamente. Há a solidão que é uma idéia negativa...

Eu amo a charneca.

E não sou romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser — ao menos, o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra.

Ora a charneca dentre Cartaxo e Santarém, àquela hora que a passamos, começava a ter esse tom, e a achar-lhe eu esse encanto indefinível.

Sentia-me disposto a fazer versos... a quê? Não sei.

Felizmente que não estava só; e escapei de mais essa caturrice. Mas foi como se os fizesse, os versos, como se os estivesse fazendo, porque me deixei cair num verdadeiro estado poético de distração, de mudez — cessou-me a vida toda de relação, e não sentia existir senão por dentro.

De repente acordou-me do letargo uma voz que bradou: — "Foi aqui!... aqui é que foi, não há dúvida."

— Foi aqui o quê?

— A última revista do imperador.

— A última revista! Como assim a última revista! Quando? Pois?...

Então caí completamente em mim, e recordei-me, com amargura e desconsolação, dos tremendos sacrifícios a que foi condenada esta geração, Deus sabe para quê — Deus sabe se para expiar as faltas de nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros...

O certo é que ali com efeito passara o imperador D. Pedro a sua última revista ao exército liberal. Foi depois da batalha de Almoster, uma das mais lidadas e das mais ensangüentadas daquela triste guerra.

Toda a guerra civil é triste.

E é difícil dizer para quem mais triste, se para o vencedor ou para o vencido.

Ponham de parte questões individuais, e examinem de boa fé: verão que, na totalidade de cada facção em que a Nação se dividiu, os ganhos, se os houve para quem venceu, não balançam os padecimentos, os sacrifícios do passado, e menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro...

Eu não sou filósofo. Aos olhos do filósofo, a guerra civil e a guerra estrangeira, tudo são guerras que ele condena — e não mais uma do que a outra... a não ser Hobbes o dito filósofo, o que é coisa muito diferente.

Mas não sou filósofo, eu: estive no campo de Waterloo, sentei-me ao pé do Leão de bronze sobre aquele monte de terra amassado com o sangue de tantos mil, vi – e eram passados vinte anos – vi luzir ainda pela campina os ossos brancos das vítimas que ali se imolaram a não sei quê... Os povos disseram que à liberdade, os reis que à realeza... Nenhuma delas ganhou muito, nem para muito tempo com a tal vitória...

Mas deixemos isso. Estive ali, e senti bater-me o coração com essas recordações, com essas memórias dos grandes feitos e gentilezas que ali se obraram.

Porque será que aqui não sinto senão tristeza?

Porque lutas fratricidas não podem inspirar outro sentimento e porque...

Eu moía comigo só estas amargas reflexões, e toda a beleza da charneca desapareceu diante de mim.

Nesta desagradável disposição de ânimo chegamos à ponte da Asseca.

IX
Prolegômenos dramático-literários, que muito naturalmente levam, apesar de algum rodeio, ao retrospecto e reconsideração do capítulo antecedente. — Livros que não deviam ter títulos, e títulos que não deviam ter livro. — Dos poetas deste século. Bonaparte, Rotschild e Sílvio Pélico. — Chega-se ao fim destas reflexões e à ponte da Asseca. — Tradução portuguesa de um grande poeta. — Origem de um ditado. — Junot na ponte da Asseca. — De como o A. deste livro foi jacobino desde pequeno. — Enguiço que lhe deram. — A Duquesa de Abrantes. — Chega-se enfim ao Vale de Santarém.

Vivia aqui há coisa de cinqüenta para sessenta anos, nesta boa terra de Portugal, um figurão esquisitíssimo que tinha inquestionavelmente o instinto de descobrir assuntos dramáticos nacionais — ainda, às vezes, a arte de desenhar bem o seu quadro, de lhe agrupar, não sem mérito, as figuras: mas ao pô-las em ação, ao colori-las ao fazê-las falar... boas noites! era sensaboria irremediável.

Deixou uma coleção imensa de peças de teatro que ninguém conhece, ou quase ninguém, e que nenhuma sofreria, talvez, representação; mas rara é a que não poderia ser arranjada e apropriada à cena.

Que mina tão rica e fértil para qualquer mediano talento dramático. Que belezas e portuguesas coisas se não podem extrair dos treze volumes — são treze volumes e grandes! — do teatro de Ênio Manuel de Figueiredo! Algumas dessas peças, com bem pouco trabalho, com um diálogo mais vivo, um estilo mais animado, fariam comédias excelentes.

Estão-me a lembrar estas.

O Casamento da Cadeia — ou talvez se chame outra coisa, mas o assunto é este: comédia cujos caracteres são habilmente esboçados, funda-se naquela nossa antiga lei que fazia casar na prisão os que assim se supunha poderem reparar certos danos de reputação feminina.

O Fidalgo de sua casa, sátira mui graciosa de um tão comum vínculo nosso.

As duas educações, belo quadro de costumes: são dois rapazes, ambos estrangeiramente educados, um francês, outro inglês, nenhum português. É eminentemente cômico, frisante, ou, segundo agora se diz à moda, “palpitante de atualidade”.

O Cioso, comédia já remoçada da antiga comédia de Ferreira e que em si tem os germes da mais rica e original composição.

O Avaro dissipador, cujo s[ó título mostra o engenho e invenção de quem tal assunto concebeu: assunto ainda não tratado por nenhum de tantos escritores dramáticos de nação alguma, e que é todavia um vulgar ridículo, todos os dias encontrado no mundo.

São muitas mais, não fica nestas as composições do fertilíssimo escritor que, passadas pelo crivo de melhor gosto, e animadas sobretudo no estilo, fariam um razoável repertório para acudir à mingua dos nossos teatros.

Um dos mais sensabores porém, a que vulgarmente se haverá talvez pela mais sensabor, mas que a mim mais me diverte pela ingenuidade familiar e simpática de seu tom magoado e melancolicamente chocho, é a que tem por título Poeta em anos de prosa.

E foi por esta, foi por amor desta que eu me deixei cair na digressão dramático-literária do princípio deste capítulo; pegou-se-me à pena porque se me tinha pregado na cabeça; e ou o capítulo não saía, ou ela havia de sair primeiro.

Poeta em anos de prosa! Ó Figueiredo, Figueiredo, que grande homem não foste tu, pois imaginaste esse título que só ele em si é um volume! Há livros, e conheço muitos, que não deviam ter título, nem o título é nada neles.

Faz favor de me dizer o de que servem o que significa o Judeu errante posto no frontispício desse interminável e mercatório romance que aí anda pelo mundo, mais errante, mais sem fim, mais imorredoiro que o seu protótipo?

E há títulos também que não deviam ter livro, porque nenhum livro é possível escrever que os desempenhe como eles merecem.

Poeta em anos de prosa é um desses.

Eu não leio nenhuma das raras coisas que hoje se escrevem verdadeiramente belas , isto é, simples, verdadeiras, e por conseqüência sublimes, que não exclame com sincero pesadume cá de dentro: Poeta em anos de prosa!

Pois este é o século para poetas? Ou temos nós poetas para este século?...

Temos sim, eu conheço três: Bonaparte, Sílvio Pélico e o Barão de Rotschild.

O primeiro fez a sua Ilíada com a espada, o segundo coma paciência, o último com o dinheiro.

São os três agentes, as três entidades, as três divindades da época.

OU cortar com Bonaparte, ou comprar com Rotschild, ou sofrer e ter paciência com Sílvio Pélico.

Tudo o que fizer doutra poesia — e doutra prosa também — é tolo...

Vieram-me estas mui judiciosas reflexões a propósito do capítulo antecedente desta minha obra-prima; e lancei-as aqui para instrução e edificação do leitor benévolo. Acabei com elas quando chegamos à ponte da Asseca.

Esquecia-me de dizer que daqueles três grandes poetas só um está traduzido em português — o Rotschild não é literal a tradução, agalegou-se e ficou muito suja de erros de imprensa, mas como não há outra...

Ora donde veio esse nome de Asseca? Algures daqui perto deve de haver sítio, lugar ou coisa que o valha, com o nome de Meca; e daí talvez o admirável rifão português que ainda não foi bem examinado como devia ser, e que decerto encerra algum grande ditame de moral primitiva: andou por Seca (Asseca?) e Meca e Olivais de Santarém, Os tais Olivais ficam logo adiante. É uma etimologia como qualquer outra.

A ponte da Asseca corta uma várzea imensa que há de ser um vasto paul de inverno: ainda agora está a dessangrar-se em água por toda a parte.

É notável na história moderna este sítio. Aqui num recontro com os nossos foi Junot gravemente ferido na cara. Il ne sera plus beau garçon, disse o parlamentário francês que veio depois da ação, tratar, creio eu, de troca de prisioneiros ou de coisa semelhante. Mas enganou-se o parlamentário; Junot ainda ficou muito guapo e gentil-homem depois disso.

Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o Maneta, as duas primeiras notabilidades que ouvi aclamar com tais e cujos nomes conheci... Engano-me; conheci primeiro o nome de Bonaparte. E lembra-me muito bem que nunca me persuadi que ele fosse o monstro disforme e horroroso que nos pintavam frades e velhas naquele tempo. Imaginei sempre que, para excitar tantos ódios e malquerenças, era necessário que fosse um bem grande homem.

Desde pequeno que fui jacobino, já se vê: e de pequeno me custou caro. Levei bons puxões de orelhas de meu pai por comprar na feira de S. Lázaro, no Porto, em vez de gaitinhas ou de registos de santos ou das outras bugigangas que os mais rapazes compravam... não imaginam o quê... um retrato de Bonaparte.

Foi enguiço, diria uma senhora do meu conhecimento que acreditou neles, foi enguiço que ainda não se desfez e que toda a vida me tem perseguido.

Quem me diria quando, por esse primeiro pecado político da minha infância, por esse primeiro tratamento duro e — perdoe-me a respeitada memória de meu santo pais! — injustíssimo, que me trouxe o mero instinto das idéias liberais, que me diria que eu havia de ser perseguido por elas toda a vida! que apenas saído da puberdade havia de ir a essa mesma França, à pátria dessas idéias com que a minha natureza simpatizava sem saber por quê, buscar asilo e guarida?

Não vi já quase nenhum daqueles que tanto desejara conhecer; as ruínas do grande Império estavam dispersas; os seus generais mortos, desterrados, ou trajavam interesseiros e cobardes as librés do vencedor...

De todas as grandes figuras dessa época, a que melhor conheci e tratei foi uma senhora, tipo de graça, de amabilidade e de talento. Pouco foi o nosso trato, mas quanto bastou para me encantar, para me formar no espírito um modelo de valor e merecimento feminino que veio a me fazer muito mal.

Custa depois a encher aquela altura a que se marcou...

Eis aqui como eu fiz esse conhecimento.

Inda o estou vendo, coitado! o pobre do C. do S., nobre, espirituoso, cavalheiro, fazendo-se perdoar todos os seus prejuízos de casta, que tinha como ninguém, por aquela polidez superior e afabilidade elegante que distingue o verdadeiro fidalgo (estilo antigo); inda o estou vendo, já sexagenário, já mais que ci-devant jeune homme, o pesoaço entalado na inflexível gravata, os pés pegando-se-lhe, como os de Ovídio, ao limiar da porta — não que lhos prendessem saudades, senão que lhos paralisava a caquexia incipiente — mas o espírito jovem a reagir e a teimar.

— Vamos! — disse ele — hoje estou bom, sinto-me outro, quero apresentá-lo a Madame de Abrantes . Está tão velha! Isto de mulheres não são como nós, passam muito depressa.

E o desgraçado tremiam-lhe as pernas e sufocava-o a tosse.

Tomamos uma citadine, e fomos com efeito à nova e elegante rua chamada, não impropriamente, a rua de Londres, onde achamos rodeada de todo o esplendor do seu ocaso aquela formosa estrela do Império.

Não quero dizer que era uma beleza, longe disso. Nem bela, nem moça, nem airosa de fazer impressão era a Duquesa de Abrantes. Mas em meia hora de conversação, de trato, descobriam-se-lhe tantas graças, tanto natural, tanta amabilidade, um complexo tão verdadeiro e perfeito da mulher francesa, a mulher mais sedutora do mundo, que involuntariamente se dizia a gente no seu coração: — Como se está bem aqui!

Falamos de Portugal, de Lisboa, do Império, da restauração, da revolução de julho (isto era em 1831), de M. de Lafayette, de Luís Filipe, de Chateaubriand — o seu grande amigo dela — do Sacré Coeur e das suas elegantes devotas (11) — falamos artes, poesia, política... e eu não tinha ânimo para acabar de conversar.

Benévolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciência, um resto e consciência: acabemos com estas digressões e perenais divagações minhas. Bem vejo que te deixei parado à minha espera no meio da ponte da Asseca. Perdoa-me por quem és, demos de espora às mulinhas, e vamos que são horas.

Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas e de loureiros viçosos. Disto é que não tem Paris, nem França, nem terra alguma do ocidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas coisas que nos faltam.

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