Powered By Blogger

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Processo de cepticismo em que está o Autor. — Moralistas de requiem. — O maior sonho desta vida, a lógica. — Diferença do poeta ao filósofo. — O coração de Horácio. — O Colégio de Santarém. — Jesuítas e templários. — O aliado natural dos reis. — "Ficar na gazeta', frase muito mais exata hoje do que “ficar no tinteiro". — S. Frei Gil e o Doutor Fausto. — De como o A. foi ao túmulo do santo bruxo e o achou vazio. — Quem o roubaria?

O final do capitulo antecedente é, bem o sei, um terrível docu­mento para este processo de cepticismo em que se mandaram meter certos moralistas de requiem de quem tenho a audácia de me rir, deles e da sua querela e do seu processo, protestando não me agravar nem apelar, nem por nenhum modo recorrer da mirifica sentença que suas excelentíssimas hipocrisias se dignarem proferir contra mim.

Feita esta declaração solene, procedamos.

E quanto a ti, leitor benévolo, a quem só desejo dar satisfação, a ti se ainda te cansas com essas quimeras, dou-te de conselho que voltes a página obnóxia, porque essas reflexões do último capitulo são tão des­locadas no meu livro como tudo o mais neste mundo. Dorme pois, e não despertes do belo ideal da tua lógica.

É uma descoberta minha de que estou vaidoso e presumido, esta de ser a lógica e a exação nas coisas da vida muito mais sonho e muito mais ideal do que o mais fantástico sonho e o mais requintado ideal da poesia.

É que os filósofos são muito mais loucos do que os poetas; e de mais a mais, tontos; o que estoutros não são.

Voltemos, voltemos a página com efeito, que é melhor.

Amanheceu hoje um belo dia, puro e sublime. Dorme nas cavernas do padre Éolo aquele vento seco e duro, flagelo dos estios portugueses. Suspira no ar uma viração branda e suave que regenera e dá vida. Mal empregado dia para o passar a ver ruínas! No seio da sempre jovem natureza, sob a remoçada espessura das árvores, sobre a alcatifa sempre renovada das gramas verdes e variegadas boninas, queria eu que me corresse este dia em ócio bem-aventurado de corpo e de alma, sentindo pulsar lento e compassado o coração livre e solto de todo empenho, o verdadeiro coração de Horácio.

Solutus omni foenore!

Tomara-me eu no vale outra vez, com a irmã Francisca a dobar à porta, a nossa Joaninha a deslindar-lhe a meada, e embora venha o terrível espectro de Fr. Dinis projetar sua funesta e trágica sombra no idílio deste quadro suave, que não pode destruir-lhe toda a amenidade bucólica, por mais que faça.

Lá voltaremos ao nosso vale, amigo leitor, e lá concluiremos, como é de razão, a história da menina dos rouxinóis. Por agora almocemos, que é tarde, e terminemos os nossos estudos arqueológicos em Marvila de Santarém.

Cá estamos no Colégio, edifício grandioso, vasto, magnífico, pró­pria habitação da companhia-rei que o mandou construir para educar os infantes seus filhos.

Creio que esta e a de Coimbra eram as duas principais casas que para isto tinham os jesuítas em Portugal.

Foram os templários dos séculos modernos, os jesuítas. A potência formidável e quase régia que aqueles levantaram com a espada, tinham estes fundado com a doutrina. Riqueza, poder, influência, uns e outros as tiveram com aplauso e aquiescência geral; uns e outros as perderam do mesmo modo.

Extintas e perseguidas, ambas as ordens renasceram no mistério, e se converteram em associações secretas para conspirarem; ambas toma­ram diversos nomes e variadas máscaras para o fazerem mais seguramente.

Ambas em vão!

O predomínio, crescente há séculos, do elemento democrático, anula todas essas conspirações. Sós e sem ele, os reis tinham sucumbi­do... É a aliada natural dos reis a democracia.

O edifício do Colégio é todo filipino, já o disse: a igreja dos mais belos espécimes desse estilo, que em geral seco, duro e sem poesia, não deixa contudo de ser grandioso.

Aqui esteve depois muitos anos o seminário patriarcal, cujas aulas freqüentava a mocidade do distrito, Hoje lêem-se ali outras palestras da cátedra administrativa. É a sede do governo civil chamado: corromper a moral do povo, sofismar o sistema representativo é o tema das lições.

Todo outro ensino se tirou de Santarém. Fala-se num liceu e não sei em que mais "que ficou na gazeta": frase portuguesa moderna que deve suprir a antiga e antiquada de — "ficou no tinteiro" — por muitas razões, até porque hoje não fica nada no tinteiro senão o senso comum, tudo o mais de lá sai, tudo. E muitas graças a Deus quando não passa às balas do impressor para dar a volta do mundo! Santarém é das terras de Portugal a melhor situada e qualificada para um grande estabeleci­mento de instrução e de educação pública. Por que não há de estar aqui o Colégio Militar ou a Casa Pia, ou outra grande escola, seja qual for? Por que há de ser esta centralização de ensino em Lisboa? Em que se funda um privilégio dado à capital em prejuízo e à custa das províncias?

Saímos do Colégio, fomos direitos a S.. Domingos, um dos mais antigos estabelecimentos monásticos do reino e que eu tanto desejava visitar. Não sei descrever o que senti quando a enferrujada chave deu a volta na porta da igreja e o velho templo se patenteou aos nossos olhos. Acabara de servir, não imaginam de quê... de palheiro!

A derradeira camada de palha que apodrecera aderia ainda ao la­jedo úmido, e exalava um forte vapor mefítico que nos sufocava. Mal pudemos ver os túmulos dos Docens e tantos outros interessantes mo­numentos que abundam na parte superior do templo. A inferior, ou corpo da igreja como dizem, é de um miserável e moderno anacronis­mo­

Respirando a custo aquele ar infecto, todo o tempo que lhe pu­desse resistir, quis aproveitá-lo em examinar a principal e mais interes­sante relíquia da profanada igreja a capela e jazigo do grande bruxo e grande santo, S. Frei Gil.

Algures lhe chamei já o nosso Doutor Fausto: e é com efeito. Não lhe falta senão o seu Goethe.

Vixere fortes ante Agomemnona multi.

Houve fortes homens antes de Agamemnão, e fortes bruxos antes e depois do Doutor Fausto. Mas sem Homero ou Goethe é que se não chega à reputação e fama que alcançaram aqueles senhores. Nós preci­samos de quem nos cante as admiráveis lutas — ora cômicas, ora tre­mendas — do nosso Frei Gil de Santarém com o diabo. O que eu fiz na Dona Branca é pouco e mal esboçado à pressa. O grande mago lusi­tano não aparece ali senão episodicamente; e é necessário que apareça como protagonista de uma grande ação, pintado em corpo inteiro, na primeira luz, em toda a luz do quadro.

Então o seu ardente e ansiado desejo de saber, os seus vastos es­tudos, os recônditos mistérios da natureza que descobriu até penetrar no mundo invisível — a sede de oiro, de prazer e de poder que o perse­guia e o fez cair nas garras do espírito maligno — o fastio e saciedade que o desencantaram depois, o seu arrependimento enfim, e a regene­ração de sua alma pela penitência, pelai oração e pelo desprezo da vã ciência humana, — então essas variadas fases de uma existência tão extraordinária, tão poética, devem mostrar-se como ainda não foram vistas, porque ainda não olhou para elas ninguém com os olhos de grande moralista e de grande poeta que são precisos para as observar e entender.

Lembra-me que sempre entrevi isto desde pequeno, quando me faziam ler a História de S. Domingos, tão rabugenta e sensabor as ve­zes, apesar do encantado estilo do nosso melhor prosador; e que eu deixava os outros capítulos para ler e reler somente as aventuras do santo feiticeiro que tanto me interessavam,

Com todas estas reminiscências que me reviviam na alma, com os admiráveis versos do Fausto a acudir-me à memória, e com uma infini­dade de associações que essas idéias me traziam, caminhei direito à capela do santo, cheio de alvoroço, e como tocado, para assim dizer, da sua mágica vara de condão.

A capela - ó desapontamento! - a capela de S. Frei Gil é um mesquinho rifacimento moderno, do lado esquerdo da igreja, sem ne­nhum vestígio de antigüidade, nenhum ornato característico, pesada, grosseira, velha sem ser antiga - um verdadeiro non-descriptum de mau gosto e sensaboria. Quem tal dissera?

O túmulo do santo está elevado do altar numa espécie de mau trono. Subi acima da degradada e profanada credência para o examinar de perto.

É de pedra o jazigo; mas ultimamente vê-se que tinham pintado a pedra; não tem lavor algum. — E estava vazio, a loisa levantada e quebrada!...

Quem me roubou o meu santo?

Quem foi o anátema que se atreveu a tal sacrilégio?...

XL
As claras. — Aventura noturna. — Se as freiras metem medo aos liberais? — O salmo. — Três frades. — Prática do franciscano. — O corpo de S. Frei Gil. — Que se há de fazer das freiras? — Mal do governo que deixar comer mais aos barões.

Era de noite, reinava a confusão, a desordem, o susto e a ansie­dade nos muros de Santarém; três homens chegavam, por horas mor­tas, ao antigo mosteiro das claras, davam à portaria um sinal surdo e misterioso; respondiam-lhe de dentro com outro igual; e dai a pouco, sem rumor e com as mais escrupulosas precauções se abria quietamente a porta da clausura.

Os três homens entraram, a porta fechou-se sobre eles do mesmo modo precatado.

Quem será?

Os homens levavam uma espécie de cofre que parecia conter preciosidades de grande valor: tal era o desvelo com que o resguardavam.

Há um mistério que se figura criminoso nesta aventura. Mas os tempos são para tudo.

Era no ano de 1834.

Entremos nesse convento das pobres claras, tão aflitas e desconso­ladas agora que as ameaçam de dissolução como aos frades.

Ná0 será assim; aquelas instituições não metem medo aos verda­deiros liberais e os outros lá têm o espólio dos frades para devorar; estão entretidos: as freiras salvam-se por ora.

Tais eram as esperanças dos três homens que entravam a estas desoras nos vedados precintos do mosteiro. Sigamo-los, porém. que é tempo.

Chegavam eles a uma pequena capela do claustro das freiras, fo­ram depor sobre o altar o cofre que traziam, e ajoelharam devotamente diante dele. Logose ouviu ao longe o salmear baixo e sumido de vozes femininas; e dai a pouco, toda a comunidade das claras, de tochas na mão, em duas alas, e a abadessa com o seu báculo atrás, entravam processionalmente no claustro e se dirigiam à mesma capela.

O salmo que cantavam era este:

"Meu Deus, vieram os bárbaros às tuas herdades, poluíram o teu santo templo, puseram Jerusalém como um granel de frutos.

"Puseram os cadáveres de teus filhos de cevo às aves do céu; as carnes dos teus santos às alimárias da terra,

“'O sangue deles derramaram-no como água nos vales de Jerusa­lém! já não havia quem sepultasse.

"Estamos feitos o opróbrio dos nossos vizinhos; o escárnio e a zombaria dos que vivem por nossos arredores.

"Até aonde, á Senhor, te hás de irar, enfim; e se há de acender o teu zelo com o fogo?

"Verte a tua ira sobre as gentes que te não conheceram, contra os reinos que não invocaram oteu nome:

"Que devoraram a Jacó; e desolaram suas terras.

"Não te lembres de nossas iniqüidades passadas, e depressa nos alcancem as tuas misericórdias; já que tão pobres demais estamos.

"Ajuda-nos Deus, salvador nosso; e pela glória do teu nome livra-­nos, Senhor, amerceia-te de nossos pecados por causa do teu nome."

Cantavam assim as pobres das freiras, cantavam em latim que elas mal entendiam; mas dizia-lhes o instinto do coração, dizia-lhes a tão excitável imaginação feminina, que era chegada a hora de se cumprir a seus olhos, e sobre elas mesmas também, a tremenda profecia do salmo que entoavam.

Havia pois lágrimas naquelas vozes que assim cantavam; saiam da alma aqueles sons e na alma vibravam também com profunda e solene melancolia.

Chegadas junto à capela, aonde estava o cofre, as freiras pararam conservando as mesmas duas alas da procissão e continuando no acen­tuado murmúrio do seu salmo.

Os três vultos de homem permaneceram de joelhos curvados diante do altar.

Findou o salmo e seguiu-se breve intervalo de silêncio. Depois, os três homens levantaram-se,. e caindo-lhes para os lados as longas capas em que vinham envoltos, viu-se que o do meio era um frade velho, magro, curvado e seco, trajando ainda, apesar da lei, o burel preto dos franciscanos e cingido com sua corda. Os outros dous eram dominicos e vestiam de preto e branco segundo as cores de seu também proscrito instituto,

O velho franciscano subiu com passo trêmulo os degraus do altar, beijou o cofre que estava sobre ele, e voltando-se para a comunidade que o contemplava em religioso silêncio, disse com uma voz cava que parecia vir do sepulcro, mas acentuada e forte:

- Irmãs, vimos entregar-vos este depósito precioso. Deus não quer que os cadáveres dos seus santos fiquem expostos às aves docéu e às alimárias da terra. Este é o santo como de um dos maiores santos que produziu esta terra de Portugal quando era abençoada. Hoje é maldita e não devia conservar as suas relíquias. Os filhos de S. Domin­gos foram expulsos de sua casa, assim como nós fomos, nós os filhos de Francisco, encontramo-nos sem teto nem abrigo uns e outros, e jun­tamos as nossas misérias para as chorarmos como irmãos que somos, como filhos de pais que tanto se amaram e ajudaram. Peregrinaremos juntos por essas solidões da terra, e juntos iremos bater por essas portas que cerrou a impiedade e a indiferença, a pedir o pão de cada dia porque temos fome. Que importa! Não professamos nós, não nos hon­ramos nós de ser mendigos? De que vivemos nós sempre senão de esmola? Não choreis, irmãs, não choreis sobre nós. Deus que o permitiu bem sabe o que fez. Louvado seja ele sempre. Nós tínhamos pecados para mais! Anda foi misericordioso conosco o Senhor da justiça e do castigo. A nós tiram-nos tudo, tudo'. Até estas mortalhas que tínhamos escolhido em vida e que nem a morte ousava roubar-nos. A furto e como quem se esconde para um ato criminoso, nós as vestimos esta noite para cometer o que eles chamarão um furto, e que era uma obri­gação sagrada nossa. Fomos à antiga casa de nossos irmãos e rouba­mos o como do bem-aventurado S. Frei Gil. Aqui vo-lo entregamos; guardai-o. Enquanto estes muros estiverem em pé, que o abriguem dos desacatos dessa gente sem Deus nem lei. A vós não ousarão expulsar-vos daqui: talvez vos matem à fome... Não pode ser: Deus não há de permiti-lo. Mas qualquer que seja a sua vontade, resignai-vos a ela, mi­nhas irmãs. Só ele sabe como nos ama e como nos castiga. Louvemo-lo por tudo.

Aqui foi um chorar e um suplicar fervente como só se ouve na hora de angústia.

As aflitas monjas estavam prostradas nas lajes úmidas do claustro, sobre as sepulturas de suas irmãs, sobre seus próprios jazigos que ha­viam de ser. O frade com os braços estendidos pronunciou as solenes palavras de bênção, descrevendo com a direita o augusto símbolo da redenção:

— Bendiga-vos, Deus onipotente, Pai Filho e Espírito Santo!

— Amém! — respondeu o coro; e os três proscritos se retiraram, deixando a salvo o seu tesouro.

Assim desapareceu do túmulo o corpo de S. Frei Gil de Santarém. Ninguém sabia dele; soube eu e guardei o segredo religiosamente.

Os tempos são outros hoje: os liberais já conhecem que devem ser tolerantes, e que precisam de ser religiosos. Não há perigo em dizer-lhes onde ele está.

Quando houver em Portugal um governo que saiba ser governo, há de regular e consolidar a existência das freiras, há de aproveitá-la para as piedosas instituições do ensino da mocidade, da cura dos en­fermos, e do amparo dos inválidos.

Os barões andam-lhe com o cheiro nos poucos bens que lhes res­tam às pobres freiras. Mal do governo que deixar comer mais aos ba­rões!

XLI
O roubador do corpo do Santo descoberto pela arguta perspicácia do leitor be­névolo. — Grande lacuna da nossa história. — Por que se não preenche. — Página preta no história de Tristão Shandv. — Novelas e romances, livros insigni­ficantes. — O adro de S. Francisco e as suas acácias.— Que será feito de Joani­nha. — O peito da mulher do norte. — Vamos embora: já me enfada Santarém e as suas ruínas. — A corneta do soldado e a trombeta do juízo final. — Eheu, Portugal, eheu!

Por certo, leitor amigo, no franciscano velho que vai de noite rou­bar os ossos do santo ao seu túmulo, e os vem esconder na clausura das freiras, por certo, digo, reconheceu já a tua natural perspicácia ao nosso Frei Dinis, o frade por excelência — frade por teima e acinte.

Pois esse era, não há duvida.

Assim se passou aquela cena e assim ma contaram. Do que me­diara entre ela e o acontecido com o frade, Carlos, Joaninha, a avó e a inglesa, disso é que nada pude saber.

É uma grande lacuna na nossa história; mas antes fique assim do que enchê-la de imaginação.

Oh! eu detesto a imaginação.

Onde a crônica se cala e a tradição não fala, antes quero uma página inteira de pontinhos, ou toda branca, ou toda preta, como na venerável história do nosso particular e respeitável amigo Tristão Shan­dv, do que uma só linha da invenção do croniqueiro.

Isso é bom para novelas e romances, livros insignificantes que to­dos lêem todavia, ainda os mesmos que o negam.

Eu também me parece que os leio, mas vou sempre dizendo que não...

Enfim, tornemos ao frade, e tornemos ás minhas viagens.

Cheio dele e da sua memória, palpitando com a recordação das tremendas cenas que, havia tão poucos anos, se tinham passado em seu antigo mosteiro, eu me aproximei enfim do real convento de S. Francisco de Santarém.

Dei pouca atenção ao belo adro e à solene vista que dele se des­cobre e menos ainda às doentias acácias que ai vegetam indefesas e raquíticas, como plantadas de má mão e em má hora — porque moças são elas, é visível: puseram-nas aí depois de extinto o convento, São triste, mas verdadeiro símbolo da apagada e factícia vida que se quis dar ao que era morto.

Vamos dentro, e vejamos pelas baixas e aguçadas arcadas do claus­tro, pelas altas naves do templo se descobrimos algum vestígio do úl­timo guardião desta casa, e dessa fadada família cujo destino, em hora aziaga, tão estreitamente se ligou com o dele.

Já me interessa isto mais, confesso, ai! muito mais, do que todos esses túmulos e inscrições que por ai estão, e que tanto caracterizam este um dos mais antigos e mais históricos edifícios do reino.

Mas em vão interrogo pedra a pedra, laje a laje: o eco morto da solidão responde tristemente às minhas perguntas, responde que nada sabe, que esqueceu tudo, que aqui reina a desolação e o abandono, e que se apagaram todas as lembranças do outro estado...

Que foi feito de ti, Joaninha, e dos teus amores? Que será feito desse homem que ousou amar-te amando a outra? E essa outra onde está? Resignou-se ela deveras? Sepultou com efeito, sob o gelo apa­rente que veste de tríplice mas falsa armadura o peito da mulher do norte, todo aquele fogo intenso e íntimo que solapadamente lhe devora o coração?

Não tenho esperanças de saber nada disso aqui.

Só pude descobrir que, no dia imediato à cena noturna das claras, Frei Dinis saiu de Santarém, não se sabe em que direção — que nesse mesmo dia Georgina saíra também pela estrada de Lisboa, levando em sua carruagem a avó e a neta, ambas meias mortas e ambas meias loucas — que não houvera mais novas de Carlos — e que a sua última carta, aquela que escrevera de junto de Évora, Joaninha a levava aper­tada nas mãos convulsas quando partira.

Pois também eu me quero partir, me quero ir embora. Já me en­fada Santarém, já me cansam estas perpétuas ruínas, estes pardieiros intermináveis, o aspecto desgracioso destes entulhos, a tristeza destas ruas desertas. Vou-me embora.

E contudo S. Francisco é uma bela ruína, que merecia ser exami­nada devagar, com outra paciência que eu já não tenho.

Se tudo me impacienta aqui!

Da bela igreja gótica fizeram uma arrecadação militar; andou a mão destruidora do soldado quebrando e abolando esses monumentos pre­ciosos, riscando com a baioneta pelo verniz mais polido e mais respei­tado desses jazigos antiqüissíssimos; os lavores mais delicados esmoucou-os, degradou-os. Levantaram as lajes dos sepulcros; e ao som da corneta militar acordaram os mortos de séculos, cuidando ouvir a trombeta final...

Decididamente vou-me embora, não posso estar aqui, não quero ver isto. Não é horror que me faz, é náusea, e asco, e zanga.

Malditas sejam as mãos que te profanaram, Santarém... que te desonraram, Portugal... que te envileceram e degradaram, nação que tudo perdeste, até os padrões da tua história!...

Eheu, cheu. Portugal!

XLII
Protesto do Autor. — Desafinação dos nervos. — O que é preciso para que os ruínas sejam solenes e sublimes. — Que Deus está no Coliseu como em S. Pedro. — Quer-se o Autor ir embora de Santarém. — Como, sem ver o túmulo

deI-rei D. Fernando?— Em que estado se acha este. — Exemplar de estilo bizan­tino. — Coroa real sobre a caveira.— O rei de espadas e o símbolo do império. — Quem nunca viu o rei cuida que é de oiro. — Brutalidades da soldadesca num túmulo real. — O que se acha nos sepulturas dos reis. - A frenologia. — Vindita pública, tarda mas ultrajante. — Camões e Duarte Pacheco. — A sombra falsa da religião. — Regime dos barões e da matéria. — A prosa e a poesia do povo. — Síntese e análise. — O senso íntimo. — Se o Autor é demagogo ou jesuíta? — Jesus Cristo e os barões.

Não chamem exagerado ao que vai escrito no fim do último capítulo; senti o que escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacerto nas palavras, porque em verdade não sei explicar a impressão que me jaz uma ruína neste estado. Desafinam-me os nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável. Queria ver antes estes altares expostos às chuvas e aos ventos do céu, — que o sol os queimasse de dia, — que à noite, à luz branca da lua, ou ao tíbio reflexo das estrelas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja sobre arcos meio caídos.

Não me parecia profanado o templo assim, nem descaído de majestade o monumento. Podia ajoelhar-me no meio das pedras soltas entre as ervas úmidas, e levantar o meu pensamento a Deus, o meu coração à glória, à grandeza, o meu espírito às sublimes aspirações da idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da vida não me vinham afligir aí.

Deus, a idéia grande do mundo — Deus, a Razão Eterna — Deus, o amor — Deus, a glória — Deus, a força, a poesia e a nobreza de alma — Deus está nas ruínas escalavradas do Coliseu, como nos zimbó­rios de bronze e mármore de S. Pedro.

Mas aqui!... nos pardieiros de um convento velho, consertado pelas Obras Públicas para servir de quartel de soldados — aqui não habita espirito nenhum.

Quero-me ir embora daqui!

E como? sem ver o túmulo del-rei Fernando? Não pode ser, é ver­dade.

Onde está ele?

No coro alto.

Subamos ao coro alto.

Oh! que não sei de nojo como o conte!

O belo jazigo do rei formoso e frívolo, tão dado às delicias do pra­zer como foi seu pai às austeridades da justiça, em que estado ele está!

Ó nação de bárbaros! Ó maldito povo de iconoclastas que é este!

O túmulo do segundo marido de D. Leonor Teles é um sarcófago de pedra branca, fina e friável, elegante e simplesmente cortada, com mais sobriedade de ornatos do que têm acabada escultura, casta e con­tinente, como o não foi a vida do rei que ai encerraram depois de morto.

Percebem-se ainda vestígios das vivas cores em que foram induzidos os relevos da pedra branca: — estilo bizantino de que não sei outro exemplar em Portugal. Este é — ou antes, era — precioso.

Era: porque a brutalidade da soldadesca o deturpou a um ponto incrível, Imaginou a estúpida cobiça destes álanos modernos que devia de estar ali dentro algum grande haver de riquezas encantadas, — talvez cuidaram achar sobre a caveira do rei a coroa real marchetada de péro­las e rubis com que fosse enterrado, — talvez pensaram encontrar, aper­tado ainda entre as secas falanges dos dedos mirrados, aquele globo de oiro maciço que lhes figura o rei de espadas do sujo baralho de sua tarimba, e que elas tem pela indispensável e infalível insígnia supremo império: - talvez supuseram que, mesmo depois de morto, um rei devia de ser de oiro... Enfim quem sabe o que eles cuidaram e pensaram? O que se sabe, porque se vê, é que quiseram abrir e arrom­bar o túmulo. Tentaram, primeiro, levantar a campa; não puderam: tão solidamente está soldada a pedra de cima ao corpo ou caixão do jazigo, que o todo parece maciço e inconsútil. Mas neste empenho quebraram e estalaram os lavores finos dos cantos, os cairéis delicados das orlas; e a campa não cedeu: parece chumbada pelo anjo dos últimos julgamen­tos com o selo tremendo que só se há de quebrar no dia derradeiro do mundo.

A cobiça estólida dos soldados não se aterrou com a religião do sepulcro nem lhe causou atrição, ao menos, esta resistência quase so­brenatural das pedras do moimento. Vê-se que trabalhou ali, de ala­vanca e de aríete, algum possante e ponderoso pé-de-cabra; mas que trabalhou em vão muito tempo.

Desenganaram-se enfim com a tampa; e resolveram atacar, mais brutalmente mas com mais vantagem, as paredes do sarcófago, que jus­tamente suspeitaram de menos espessas. Assim era; e conseguiram na parede da frente abrir um rombo grosseiro por onde entra fácil um braço todo e pode explorar o interior do túmulo à vontade.

Assim o fiz eu, que meti o meu braço por essa abertura barrada, e achei terra, pó, alguns ossos de vértebras, e duas caveiras, uma de ho­mem, outra de criança.

Não me lembra que haja memória alguma de infante que aí fosse sepultado também, segundo faziam os antigos muitas vezes que pu­nham os cadáveres das crianças nos jazigos dos pais, dos parentes, até de meros amigos de suas famílias.

Tive, confesso, uma espécie de prazer maligno em imaginar a estú­pida compridez de cara com que deviam de ficar os brutais profanado­res, quando achassem no túmulo do rei o que só têm os túmulos — de reis ou de mendigos — ossos. terra, cinza, nada!

Por mim, estive tentado a furtar a caveira dei-rei D. Fernando. Se acreditasse na frenologia, parece-me que não tinha resistido. Não creio na ciência, felizmente — neste caso — para a minha consciência. Tam­bém não sei o que faria se a caveira fosse de outro homem. Mas o fraco rei que fez fraca a fraca gente não são relíquias as suas que se guardem,

Oh! e quem sabe? Esta profanação, este abandono, este desacato do túmulo de um rei, ali na sua terra predileta — D. Fernando era santareno de afeição — não será ele o juízo severo da posteridade, a vindita pública dos séculos, que tardia mas ultrajante, cai enfim sobre a memória reprovada do mau príncipe, e lhe desonra as cinzas como já lhe desonrara o nome?

Quero acreditar que tal não podia suceder aos túmulos de D. Dinis, de D. Pedro I, dos dois Joanes I e II, de...

Sim: e aonde está o de Camões? O de Duarte Pacheco aonde esteve? que ainda é mais vergonhosa pergunta esta última.

Em Portugal não há' religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nu­dez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...

Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há de morrer.

Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.

Creio isto firmemente.

Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo, está são; os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo.

Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não entendemos a po­esia do povo; nós, que só compreendemos o tangível dos sentidos, nós somos estranhos às aspirações sublimes do senso íntimo, que despreza as nossas teorias presunçosas, porque todas vêm de uma acanhada aná­lise que procede curta e mesquinha dos dados materiais, insignificantes e imperfeitos; — enquanto ele, aquele senso intimo do povo, vem da Razão divina, e procede da síntese transcendente, superior, e inspirada pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem.

E eu que descrevo isto serei eu demagogo? Não sou.

Serei fanático, jesuíta, hipócrita? Não sou.

Que sou eu, então?

Quem não entender o que eu sou, não vale a pena que lho diga...

Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última no fim deste capitulo já tão secante, e prometo não refletir nunca mais.

Jesus Cristo, que foi o modelo da paciência, da tolerância, o ver­dadeiro e único fundador da liberdade e da igualdade entre os homens, Jesus Cristo sofreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos lhe fizeram a ele e à sua missão divina; perdoou ao matador, á adúltera, ao blasfemo, ao ímpio. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pode conter, pegou num azorrague e zurziu-os sem dor.

XLIII
Partida de Santarém. — Pinacoteca. — Impaciência e saudades. — Sexta-feira. —Martírio obscuro. — A figura do pecado. — Estamos no vale outra vez. — Evoca­ção de encanto. — A irmã Francisca e Frei Dinis. — A teia de Penélope. — E Joaninha? — Joaninha está no Céu. — A mulher morta a dobar esperando que a enterrem. — A esperança, virtude do Cristianismo. — Uma carta.

Estou deveras fatigado de Santarém; vou-me embora.

Despedimo-nos saudosos daquela boa e leal família que nos hos­pedara com tanto carinho, com toda a velha cordialidade portuguesa; partimos.

Apenas comecei a respirar o ar fresco da manhã nos olivais, senti desafogar-se-me a alma daquela constrição cansada que se experimenta na longa visita a um museu de antigüidades, a uma galeria de pinturas.

Perdoem-me que não diga pinacoteca; bem sei que é moda, eque a palavra é adotável segundo as mais estritas regras de Horácio, pois cai da fonte grega diretamente e sem mistura: mas soa-me tão mal em português que não posso com ela.

Santarém fatigou-me o espírito, como todas as coisas que fazem pensar muito. Deixo-a porém com saudade, e não me hei de esquecer nunca dos dias que aqui passei. De quê e como sou eu feito, que não posso estar muito tempo num lugar, e não posso sair dele sem pena?

Já me está custando ter deixado Santarém. Por que não havíamos de partiramanha, e ter ficado ainda hoje ali?

E hoje que é sexta-feira?... Mau dia para começar viagem!

Sexta-feira! Era o dia aziago do nosso vale, da pobre velha cega que ai vivia sua triste vida de dores, de remorsos e desconforto, espe­rando porém em Deus, conformada com seu martírio: martírio obscuro, mas tão ensangüentado daquele sangue que mana gota a gota e dolo­rosamente do coração rasgado, devorado em silêncio pelo abutre invisí­vel de uma dor que se não revela, que não tem prantos nem ais.

Era na sexta-feira que o terrívelfrade, o demônio vivo daquela mulher de angústias, lhe aparecia tremendo e espantoso diante de seus olhos cegos, elevado pela imaginação ás proporções descomunais e gi­gantescas de um vingador sobrenatural.

Era a figura tangível, e visível à vista de sua alma, do enorme pe­cado que contra ela estava sempre.

Creio que escuso dizer que não tenho eu esta superstição dos dias aziagos que tinha a desgraçada velha, que a sua Joaninha partilhava. Mas confesso que, recordando as fatalidades daquela família e daquele dia, não gostei de voltar nele ao vale de Santarém,

Estávamos porém no vale; e ia eu via de longe aquelas arvores e aquela janela, que tanto me impressionaram, quando estas reflexões me acudiam ao espírito e mo contristavam,

Afrouxei insensivelmente o passo, deixei tomar larga dianteira aos meus companheiros de viagem: e quando chegava perto da casa, tinha-os perdido de vista.

Involuntariamente parei defronte da janela: mordia-me um interes­se, urna curiosidade irresistível... Nem viva alma por aqueles arredores; apeei-me e fui direito para a casa

Apenas passei as árvores, um espetáculo inesperado, uma evoca­ção como de encanto me veio ferir os olhos.

No mesmo sitio, do mesmo modo, com os mesmos trajos e na mesma atitude em que a descrevi nos primeiros capítulos desta história, estava a nossa velha irmã Francisca...

Ela era e não podia ser outra; sentada na sua antiga cadeira, do­bando, como Penélope tecia, a sua interminável meada. Não havia ou­tra diferença agora senão que a dobadoira não parava, e que o fio seguia, seguia, enrolando-se, enrolando-se continuo e compassado no novelo; e que os braços da velha lidavam lentamente, mas sem cessar, no seu movimento de autômato que fazia mal ver.

Defronte dela, sentado numa pedra, a cabeça baixa. e os olhos fixos num grosso livro velho, que sustinha nos joelhos, estava um ho­mem seco e magro, descarnado como um esqueleto, lívido como um cadáver, imóvel como uma estátua, Trajava um non-descríptum negro, que podia ser sotaina de clérigo ou túnica de frade, mas descingida, solta e pendente em grossas e largas pregas do extenuado pescoço do homem.

Também não podia ser senão Frei Dinis,

Cheguei junto deles; não me sentiu nenhum dos dois; nem me viu ele, o que só via dos dois.

Sem mais reflexão, e continuando alto na série de pensamentos que me vinha correndo pelo espírito, exclamei:

— E Joaninha?

— Joaninha esta no Céu! - respondeu sem sobressalto, sem er­guer os olhos do seu livro, a sombra do frade, que outra coisa não parecia.

— Joaninha, pobre Joaninha! Pois como foi, como acabou a infe­liz?

— Joaninha não é infeliz: foi ser um anjo na presença de Deus.

— E... e Carlos? balbuciei eu hesitando, porque temia a suscetibilidade do frade.

— Carlos! — respondeu ele erguendo enfim os olhos e cravando-os em mim...

E oh! que nunca vi olhos como aqueles, nem os hei de ver!

— Carlos!... E quem é que mo pergunta? Quem é que tanto sabe de mim e dos meus?... Dos meus? Eu não tenho meus; sou só.

— Só! Não está aqui, que eu vejo!...

— Vê essa mulher morta que ai ficou, que eu matei, e que está a espera que dê a hora de eu a enterrar, mais nada. Eu estou só e quero estar só. Morreu tudo. Que mais quer saber?

— Venho de Santarém...

Santarém também morreu; e morreu Portugal. Aqui não vive senão o meu pecado, que Deus não perdoou ainda, nem espero...

— A nossa religião fez uma virtude da esperança,

— Fez.

— E nisso se distingue das outras todas.

— Pois ainda há quem o saiba nesta terra?

— Há mais do que não houve nunca - pelo menos há mais quem o saiba melhor.

— Pode ser: os juízos de Deus são incompreensíveis.

— E infinita a sua misericórdia.

— Mas a sua cólera implacável, a sua justiça tremenda.

— A misericórdia é maior.

— Quem lhe ensinou tudo isso?

— O Evangelho, o coração e minha mãe que mos explicou am­bos.

— Sente-se aqui... ao pé de mim.

Sentei-me. O frade pegou-me na mão com as suas ambas, e pôs-me os olhos com uma expressão que nenhuma língua pode dizer, nem nenhum pincel pintar.

Esteve assim algum tempo, como quem me observava. Vi-lhe apontar claramente uma lágrima, vi-lha retroceder, e ficarem-lhe enxu­tos os olhos. Senti-lhe estrangular um suspiro que lhe vinha à garganta; percebi distintamente o estremeção que lhe correu o corpo; mas obser­vei que todo se serenou depois.

Disse-me então com voz magoada, mas plácida e sem aspereza já nenhuma:

— Sabe a história do vale?

— Sei tudo até a partida de Carlos para Évora.

— Aqui tem a carta que ele escreveu.

Tirou do breviário um papel dobrado, amarelo do tempo e man­chado, bem se via. de muitas lágrimas, algumas recentes ainda.

— Leia.

Li.

Esta era a carta de Carlos

Nenhum comentário:

Postar um comentário