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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Dos frades em geral. — O frade moralmente considerado, socialmente e artisticamente. — Prova-se que é muito mais poético o frade que o barão. — Outra vez D. Quixote e Sancho Pança. — Do que seja o barão, sua classificação e descrição lineana. — História do Castelo do Chucherumelo. — Erro palmar de Eugênio Sue; mostra-se que os jesuítas não são a cólera-morbo, e que é preciso refazer o Judeu Errante. — De como o frade não entendeu o nosso século nem o nosso século ao frade. — De como o barão ficou em lugar do frade, e do muito que nisso perdemos. — Única voz que se ouve no atual deserto da sociedade; os barões a gritar contos de réis. — Como se contam e como se pagam os tais contos. — Predileção artística do A. pelo frade: confessa-se e explica-se esta predileção.

Frades... Frades... Eu não gosto e frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando.

No ponto de vista artístico porém o frade faz muita falta.

Nas cidades, aquela figuras graves e sérias com os seus hábitos talares, quase todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça européia — cortavam a monotonia do ridículo e davam fisionomia à população.

Nos campos o efeito era ainda muito maior; eles caracterizavam a paisagem, poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de vale; e tão necessárias, tão obrigadas figuras eram em muito desses quadros, que sem elas o painel não é já o mesmo.

Além disso o convento no povoado e o mosteiro no ermo animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo; eles protegiam as árvores, santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade.

O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituíram.

É muito mais poético o frade que o barão.

O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha.

O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova.

Menos na graça...

Porque o barão é o mais desgracioso e estúpido animal da criação.

Sem excetuar a família asinina que se ilustra com individualidades tão distintas como o Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da Pucela de Orleans e outros.

O barão (onagrus-baronis de Linn, l’âne baron de Buf.) é uma variedade monstruosa engendrada na burra de Balaão, pela parte essencialmente judaica e usurária de sua natureza, em coito danado com o urso Martinho do Jardim das Plantas, pela parte franquinótica sordidamente revolucionária de seu caráter.

O barão é pois usualmente revolucionário, e revolucionamente usurário.

Por isso é zebrado de riscas monárquico-democráticas por todo o pêlo.

Este é o barão verdadeiro e puro-sangue; o que não tem estes caracteres é espécie diferente, de que aqui não se trata.

Ora, sem sair dos barões e tornando aos frades eu digo: que nem eles compreenderam o nosso século, nem nós o compreendemos a eles...

Por isso brigamos muito tempo, afinal vencemos nós, e mandamos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o ... e escouceou-nos a nós depois.

Como havemos agora de matar o barão?

Porque este mundo e a sua história é a história do “castelo de Churumelo”. Aqui está o cão que mordeu no gato, que matou o rato, que roeu a corda, etc. etc.: vai sempre assim seguindo...

Mas o frade não nos compreendeu a nós, por isso morreu, e nós não compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer.

São a moléstia deste século; são eles, não os jesuítas, a cólera morbo da sociedade atual, os barões. O nosso amigo Eugênio Sue errou de meio a meio no Judeu Errante que precisa refeito.

Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender a nós, ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo não lhe servia nem o servia.

Nós também erramos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe não dar outra direção social, e evitar assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor.

Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi e há de ser. Por mais belas teorias que se façam, por mais constituições que se comece, o status in statu forma-se logo: ou com frades ou com barões ou com pedreiros-livres, se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como todas as coisas sublunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e modera sua velocidade, outras a empece com demasia e abuso, mas enfim é uma necessidade.

Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos frades que a dos barões. O caso estava em saber conter e aproveitar.

O Progresso e a liberdade perdeu, não ganhou.

Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos fardes — não dos frades que foram, mas dos que podiam ser.

E sei que me não enganam poesias; que eu reajo fortemente com uma lógica inflexível contra as ilusões poéticas em se tratando de coisas graves.

E sei que me não namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes com o que é.

Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polônia, no Brasil, podia e devia sê-lo entre nós; e nós ficávamos muito melhor do que estamos com meia dúzia de clérigos de requiem para nos dizer missas; e com duas grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para exercer toda a influência moral e intelectual da sociedade — porque não há de outra cá.

E senão digam-me: onde estão as universidades, e o que faz essa que há, senão dar o seu grauzito de bacharel em leis e em medicina? O que escreve ela, o que discute, que princípios tem, que doutrinas professa, quem sabe ou ouve dela senão algum eco tímido e acanhado do que noutra parte se faz ou diz?

Onde estão as academias?

Que palavra poderosa retine nos púlpitos?

Onde esta a força da tribuna?

Que poeta canta tão alto que o oiçam as pedras brutas e os robres duros desta selva materialista a que os utilitários nos reduziram?

Se excetuarmos o débil clamor da imprensa liberal já meio esganada da polícia, não se ouve no vasto silêncio deste ermo senão a voz dos barões gritando contos de réis.

Dez contos de réis por um eleitor!

Mais duzentos contos pelo tabaco!

Três mil contos para a conversão de um anfiguri!

Cinco mil contos para as estradas dos aeronautas!

Seis mil contos para isto, dez mil contos para aquilo!

Não tardam a contar por centenas de milhares.

Contar a eles não lhes custa nada.

A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel — a terra e a indústria

Este capítulo deve ser considerado como introdução ao capítulo seguinte, em que entra em cena Frei Dinis, o guardião de S. Francisco de Santarém.

Já me disseram que eu tinha o gênio frade, que não podia fazer conto, drama. romance sem lhe meter o meu fradinho.

O Camões tem um frade: Frei José Índio;

A Dona Branca três, Frei Soeiro, Frei Lopo e S. Frei Gil — faz quatro.

A Adosinda tem um ermitão, espécie de frade — cinco;

Gil Vicente tem outro — isto é, verdadeiramente não tem senão meio frade, que é André de Resende, de mais a mais, pessoa muda — cinco e meio;

O Alfageme três quartos de frade, Froilão Dias, chibato da Ordem de Malta — seis frades e um quarto;

Em Frei Luís de Souza, tudo são frades; vale bem nesta computação, os seus três, quatro, meia dúzia de frades — são já doze e quarto;

Alguns, não eu, querem meter nesta conta o Arco de Santana, em que há bem dois fardes e um leigo;

E aqui tenho eu às costas nada menos que quinze frades e quarto.

Com este Frei Dinis é um convento inteiro.

Pois senhores, não sei que lhes faça; a culpa não é minha. Desde mil cento e tantos que começou Portugal, até mil oitocentos trinta e tantos que uns dizem que ele se restaurou, outros que o levou a breca, não sei o que se passasse ou pudesse passar nesta terra, coisa alguma pública ou particular, em que o frade não entrasse.

Para evitar isto, não há senão usar da receita que vem formulada no capítulo 5 desta obra.

Faça-o quem gostar; eu não, que não quero nem sei.

XIV
Emendado enfim de suas distrações e divagações, prossegue o A. diretamente com a história prometida. — De como Frei Dinis deu a manga a beijar à avó e à neta, e do mais que entre eles se passou. — Ralha o frade com a velha, e começa a descobrir-se onde a história vai ter.

Este capítulo não tem divagações, nem reflexões, nem considerações de nenhuma espécie, vai direto e sem se distrair, pela sua história adiante.

Frei Dinis chegava ao pé das duas mulheres, e disse:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Joana adiantou-se alguns passos a beijar-lhe a manga. Ele acrescentou:

— A benção de Deus te cubra, filha, e a de nosso padre S. Francisco!

— Benedicite, padre guardião! — disse a velha inclinando-se, meia levantada da cadeira.

Em nome do Senhor! amém — respondeu o frade aproximando-se, e chegando o braço ao alcance de lho ela beijar; — Ora aqui estou, minha irmã; que me quer? E como vai isto por cá? Vamo-nos confortando, tendo paciência, e sofrendo com os olhos no Senhor.

— Já os não tenho senão para ele, padre.

— Ah, ah! irmão Francisca, sempre esse pensamento, sempre essa queixa! Tenho-a repreendido tanta vez e não se emenda.

— Eu não me queixei, meu padre. Deus sabe que não me queixo... ao menos não por mim.

— Pois por quem?

— Ó padre!

— Irmã Francisca, tenho medo de a entender. Eu não conheço as afeições da carne nem lido com os fracos pensamentos do mundo. Sou frade, minha irmã, sou um que já não é do número dos vivos, que vesti esta mortalha para não ser deles, que a vesti num tempo em que a mofa e o desprezo são o único patrimônio do frade, em que o escárnio, a derrisão, o insulto — o pior e o mais cruel de todos os martírios — são a nossa púnica esperança. Eu quis ser frade, fiz-me frade no meio e tudo isto; já velho e experimentado no mundo, farto de o conhecer, e certo do que me espera — a mim e à profissão que abracei. Que quer de um homem que assim se resolveu a cortar por quanto prende a humanidade a esta miserável vida da terra, para não viver senão das esperanças da outra? Eu vesti este hábito para isto. O seu irmão, o seu para que o vestiu? É um divertimento, é um capricho, é uma comédia com Deus? Rasgue-o depressa, vista-se das galas do mundo, não aperte com a paciência divina, trajando por fora o saco da penitência e trazendo o coração por entro desapertado de todo o cilício e mortificação.

A velha com as mãos postas, a face alevantada e os apagados olhos para o céu, oferecia a Deus todo o amargor daquela austeridade que não cuidava merecer nem lhe parecia entender. Joaninha, que insensivelmente se fora aproximando da avó e a tinha como amparada por trás com um dos seus braços, firmava a outra mão nas costas da cadeira e cravava fita no frade a vista penetrante e cheia de luz. A expressão do seu rosto era indefinível: irisava-lho, distinta mas promiscuamente, um misto inextricável de entusiasmo e desanimação, de fé e de incredulidade, de simpatia e aversão.

Dissera que naqueles olhos verdes e naquele rosto mal corado estava o tipo e o símbolo das vacilações do século.

— Padre! — tornou a velha com sincera humildade na voz e no gesto: — se o mereci, castigai-me. Deus, que me vê e me ouve, bem sabe que o digo em toda a verdade do meu coração, e há de perdoar-me porque sou fraca e mulher.

— Pois aos fracos não é que Ele disse: Toma a tu cruz e segue-me? Quem a obrigou a fazer os votos que fez?

— É verdade, padre, é verdade: bem sei o que prometi, que me voltei a Deus de alma e corpo, que me não pertenço, que nem das minhas afeições posso dispor, mas...

— Mas o quê? Irmã Francisca, a Deus não se engana. Os seus votos não foram feitos num mosteiro, nem proferidos num altar no meio das solenidades da igreja, mas já lho tenho dito, no foro da consciência, na presença de Deus, ligam-na tanto ou mais do se o fossem . Abjure-os se quiser; nenhuma lei, nenhuma força humana a constrange. Diga-mo por uma vez, desengane-me, e eu não torno aqui.

— Oh, por compaixão, padre! pelas chagas de Cristo! Mas um pergunta só, uma só, e eu prometo não pensar, não falar mais em... Onde está ele?

— Joana, retire-se.

Joaninha apertou a avó com ambos os braços; e sem dizer uma palavra, sem fazer um só gesto, lentamente e silenciosamente se retirou para dentro de casa.

—E esta, padre? — disse a velha, sem esperar a resposta à primeira pergunta que com tanta ânsia fizera — e esta, também dela me hei de separar, também hei de renunciar a ela?

— Esta é uma inocente, e enquanto o for...

— Enquanto o for! A minha Joana é um anjo.

— Blasfêmia, blasfêmia! E o Senhor a não castigue por ela. Joana é boa e temente a Deus: esperemos que ele a conserve da sua mão. O outro...

— Que é feito dele, padre? Oh, diga-mo, e eu prometo...

— Não prometa senão o que pode cumprir. Seu neto está com esses desgraçados que vieram das ilhas, é dos que desembarcaram no Porto.

— Ó filho da minha alma! que não torno a abraçar-te...

— Não decerto; vencedores ou vencidos, toda a comunhão, toda a possibilidade de união acabou entre nós e estes homens. Nós temos obrigação de os destruir, eles o seu único desejo é exterminar-nos.

— Meu Deus! meu Deus! pois a isto somos chegados? Pois já não há misericórdia no céu nem na terra!

— A misericórdia de Deus cansou-se; a da terra não sei onde está nem onde esteve nunca. Os fracos dão sacrilegamente este nome à sua relaxação.

— Pois é relaxação desejar a paz, querer a união, suplicar a indulgência? Não nos manda Deus perdoar todas as nossa dívidas, amar os nossos inimigos?

— Os nossos sim, os d’Ele não.

— Tende compaixão de mim, Senhor!

— Se as suas aflições são as da carne e do sangue, se são pensamentos da terra, como desgraçadamente vejo que são, mulher fraca e de pouco ânimo, console-se, que para mim é claro e seguro que estes homens hão de vencer.

— Quais homens?

— Esses inimigos do altar e da verdade, esses homens desvairados pelas especiosas doutrinas do século. Esperam muito, prometem muito, estão em todo o vigor das suas ilusões. E nós, nós carregamos com o desengano de muitos séculos, com os pecados de trinta gerações que passaram, e com a inaudita corrupção do presente... nós havemos de sucumbir. Os templos hão de ser destruídos, os seus ministros proscritos, o nome de Deus blasfemado à vontade nesta terra maldita.

— Pois tão perdidos, tão abandonados da mão de Deus são eles todos... todos?

— Todos. E que cuida, irmã? que são melhores os nossos, esses que se dizem nossos? que há mais fé na sua crença, mais verdade na sua religião? Ó santo Deus!

— Faz-me tremer, padre!

— E para tremer é. A impiedade e a cobiça entraram em todos os corações. Duvidar é o único princípio, enriquecer o único objeto de toda essa gente. Liberais e realistas, nenhum tem fé: os liberais ainda têm esperança; não lhe há de durar muito. Deixem-nos vencer e verão.

— E hão de vencer eles?

— Decerto.

— Ninguém mais diz isso.

— Digo-o eu.

— Tantos mil soldados que o governo tem por si!

— E tantos milhões de pecados contra. Não pode ser, não pode ser: a misericórdia divina está exausta, e o dia desejado dos ímpios vai chegar. A sua missão é fácil e pronta; não sabem, não podem senão destruir. Edificar não é para eles, não têm com quê, não crêem em nada. O símbolo cristão não é s[ó uma verdade religiosa, é um princípio eterno e universal. Fé, esperança e caridade. Sem crer, sem esperar...

—E sem amar!

— Mulher, mulher! o amor é a última virtude...

— Mas por ela, por ela se chega às outras.

— Não, mulher fraca, não. E de uma vez para sempre, irmã Francisca, desenganemo-nos. Entre mim, entre o Deus que eu sirvo, não há uma transação com os seus inimigos. Indulgência nesse ponto não sei o que é. Vejo a sorte que me espera neste mundo, e não tremo diante dela. Quem teme, siga outro caminho; eu nunca.

— Padre, eu não temo nem receio por mim. Sou fraca e mulher, e em toda a tribulação e desgraça hei de glorificar o meu Deus e dar testemunho da minha fé. Mas... mas o meu neto é o meu sangue, a minha vida, é o filho querido da minha única e tão amada filha, ele não conheceu outra mãe, senão a mim, quero-lhe por ele e por ela. Abandoná-lo não posso, tirar dele o pensamento não sei. A vontade de Deus...

— A vontade de Deus é que o justo se aparte do ímpio, é que os cordeiros da benção vão para um lado, e o cabritos da maldição para outro. Esse rapaz... oh! minha irmã, eu não sou de pedra, não, não sou, e também o coração me parte de o dizer... mas esse rapaz é maldito, e entre nós e ele está o abismo de todo o inferno.

— Misericórdia, meu Deus!

Pálido, enfiado, mais descorado e mais amarelo do que era sempre aquele rosto, Frei Dinis pronunciou, tremendo mas com força, as suas últimas e terríveis palavras. Os olhos habitualmente sumidos e cavos, recuaram-lhe ainda mais para dentro das órbitas descarnadas; o bordão tremia-lhe na esquerda; e a direita, suspensa no ar, parecia intimar ao culpado a terrível imprecação que lhe saía dos lábios.

— Maldito! maldito sejas tu! — prosseguiu o frade — filho ingrato, coração derrancado e perverso!

— Meu Deus, não o escuteis! — bradou a velha caindo de joelhos no chão e prostrando-se na terra dura. — Meu Deus, não confirmais aquelas palavras tremendas. Não o ouçais, Senhor, e valha o sangue precioso de vosso filho, as dores benditas de sua mãe, ó meu Deus! para arredar da cabeça do meu pobre filho as cruéis palavras deste homem sem piedade, sem amor...

A velha queria dizer mais; as angústias que se tinham estado juntando naquela alma, que por fim não podia mais e transbordava, queriam sair todas, queriam derramar-se ali em lágrimas e soluços nas presenças do seu Deus que ela via sempre no trono das misericórdias, que não podia acabar consigo que visse o inflexível, o terrível Deus das vinganças que lhe anunciava o frade. Mas a carne não pode com o espírito, as forças do corpo cederam: tomou-a um mortal delíquio, emudeceu, e ... suspendeu-se-lhe a vida.

Frei Dinis contemplou-a alguns momentos nesse estado e pareceu comover-se; mas aqueles nervos eram de fios de ferro temperado que não vibrava a nenhuma suave percussão: deu dous passos para a porta da casa, bateu com o bordão e disse com voz firme e segura:

— Joana, acuda a sua avó que não está boa.

Daí tornou por onde viera, e, sem voltar uma vez a cabeça, caminhou apressado; breve se escondeu para lá das oliveiras da estrada.

XV
Retrato de um frade franciscano que não foi para o depósito da Terra Santa, nem consta que esteja na Academia das Belas Artes. — Vê-se que a lógica de Frei Dinis se não parecia nada coma de Condilac. — Suas opiniões sobre o liberalismo e os liberais. — Que o poder vem de Deus, mas como e para quê. — Que os liberais não entendem o que é liberdade e igualdade; e o para que eram os frades, se fossem.— Prova-se, pelo texto, que o homem não vive só de pão, e pergunta-se o de que vivia então Frei Dinis.

Quem era Frei Dinis?

Disse-o ele: — um homem que se fizera frade, já velho e cansado do mundo, que vestira o hábito num tempo em que a mofa, o escárnio e o desprezo seguiam aquela profissão; que o sabia, que o conhecia e por isso mesmo o afrontara.

Destes raros e fortes caracteres aparece sempre na agonia das grandes instituições para que nenhuma pereça sem protesto, para que de nenhum pensamento durável e consagrado pelo0 tempo se possa dizer que lhe faltou quem o honrasse na hora derradeira por uma devoção nobre, gloriosa e digna do alto espírito do homem: — que o homem é uma grande e sublime criatura por mais que digam filósofos.

Tal era frei Dinis, homem de princípios austeros, de crenças rígidas, e de uma lógica inflexível e teimosa: lógica porém que rejeitava toda a análise, e que, forte nas grandes verdades intelectuais e morais em que fixara o seu espírito, descia delas com o tremendo peso de uma síntese aspérrima e opressora que esmagava todo o argumento, destruía todo o raciocínio que se lhe punha diante.

Condilac chamou à síntese método de trevas: Frei Dinis ria-se de Condilac... e eu parece-me que tenho vontade de fazer o mesmo.

O despotismo, detestava-o como nenhum liberal é capaz de o aborrecer; mas as teorias filosóficas dos liberais, escarnecia-as como absurdas, rejeitava-as como perversoras de toda a idéia sã, de todo o sentimento justo, de toda a bondade praticável. Para o homem em qualquer estado, para a sociedade em qualquer forma não havia mais leis que as do Decálogo, nem se precisavam mais constituições que o Evangelho: dizia ele. Reforça-las é supérfluo, melhorá-las impossível, desviar delas monstruoso. Desde o mais alto da perfeição evangélica, que é o estado monástico, há regras para todos ali; e não falta senão observá-las.

Não sei se esta doutrina não tem o que quer que seja de um sabor independente e livre, se não cheira o seu tanto à confiança herética dos reformistas evangélicos. O que sei é que Frei Dinis a professava de boa fé, que era católico sincero , e frade no coração.

Segundo os seus princípios, poder de homem sobre homem era usurpação sempre e de qualquer modo que fosse constituído. Todo poder estava em Deus — que o delegava ao pai sobre o filho, daí ao chefe da família sobre a família, daí a um desses sobre todo o Estado, mas para reger segundo o Evangelho e em toda a austeridade republicana dos primitivos princípios cristãos.

Assim fora ungido Saul, e nele todos os reis da terra — sem o que não eram reis.

Tudo o mais, anarquia, usurpação, tirania, pecado, — absurdo insustentável e impossível.

E sobre isto também não disputava, que não concebia como: era dogma.

Nas aplicações, sim, questionava ou, antes, argüía com sua lógica de ferro. As antigas leis, os antigos usos, os antigos homens, não os poupava mais do que aos novos. A tirania dos reis, a cobiça e a soberba dos grandes, a corrupção e a ignorância dos sacerdotes, nunca houve tribuno popular que as açoitasse mais sem dó nem caridade.

O princípio porém da monarquia antiga, defendia-o, já se vê, por verdadeira, embora fossem mentirosos e hipócritas os que o invocavam.

Quanto às doutrinas constitucionais, não as entendia, e protestava que os seus mais zelosos apóstolos as não entediam tampouco: não tinham senso comum, eram abstrações de escola.

Agora, do frade é que me eu queria rir... mas não sei como.

O chamado liberalismo, esse entendia ele: “Reduz-se, dizia, a duas coisas, duvidar e destruir por princípio, adquirir e enriquecer por fim; é uma seita toda material em que a carne domina e o espírito serve; tem muita força para o mal; bem verdadeiro, real e perdurável, não o pode fazer. Curar com uma revolução liberal um país estragado, como são todos os da Europa, é sangrar um tísico: a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão por algum tempo, mas as forças vão-se e a morte é a mais certa.”

Dos grandes princípios da Igualdade e da Liberdade dizia: “Em eles os praticando deveras, os liberais, faço-me eu liberal também. Mas não há perigo: se os não entendem! Para entender a liberdade é preciso crer em Deus, para acreditar na igualdade é preciso ter o Evangelho no coração.”

As instituições monásticas eram, no seu entender e no seu sistema, condição essencial de existência para a sociedade civil — para uma sociedade normal. Não paliava os abusos dos conventos, não cobria os defeitos dos monges, acusava mais severamente que ninguém a sua relaxação; mas sustentava que, removido aquele tipo da perfeição evangélica, toda a vida cristã ficava sem norma, toda a harmonia se destruía, e a sociedade ia, mais depressa e mais sem remédio, precipitar-se no golfão do materialismo estúpido e brutal em que todos os vínculos sociais apodreciam e caíam e em que mais e mais se isolava e estreitava o individualismo egoísta — última fase da civilização exagerada que vai tocar no outro extremo da vida selvagem.

Tais eram os princípios deste homem extraordinário, que juntava a uma erudição imensa o profundo conhecimento dos homens e do mundo em que tinha vivido até a idade de cinqüenta anos.

Como e por que deixara ele o mundo? Como e por que um espírito tão ativo e superior se ocupava apenas do obscuro encargo de guardião do seu convento — cargo que aceitara por obediência — e quase que limitava as suas relações fora do claustro àquela casa do vale onde não havia senão aquela velha e aquela criança?

Apesar de sua rigidez ascética, prendia esse espírito por alguma coisa a este mundo? Aquele coração macerado do cilício dos pensamentos austeros e terríveis do eterno futuro, consumindo na abstinência de todo o gozo, de todo o desejo no presente, teria acaso viva ainda bastante alguma fibra que vibrasse com recordações, com saudades, com remorsos do passado?

No seu convento ele não tinha senão uma cela nua com um crucifixo por todo adorno, um breviário por único livro. Naquela só família que conversava, havia, já o disse, a velha cega e decrépita, Joaninha com quem apenas falava, e um ausente, um rapaz que quem há dous anos quase que se não sabia. Em intrigas políticas, em negócios eclesiásticos, em coisa mais nenhuma deste mundo não tinha parte. De que vivia pois aquele homem — homem que certo não era daqueles que viviam só e pão?

E este era um dos poucos textos latinos que ele repetia, este o tema predileto dos raros sermões que pregava: Non in solo pane vivit homo. Nem só de pão vive o homem.

Vivia então de alguma outra coisa este homem; e a meditação e a oração não lhe bastavam, porque ele saía do seu convento e não ia pregar nem rezar... todas às sextas feiras era certo na casa do vale à mesma hora, do mesmo modo...

Ali estava pois alguma parte da vida do frade que de todo se não desprendera da terra, e que, por mais que ele diga, lhe faltava castrar ainda por amor do céu.

É que meio século de viver no mundo deixa muita raiz, que não morre assim. E talvez é uma só a raiz, mas funda, e rija de fevra e de selva, que as folhas morrem, os ramos secam, o tronco apodrece, e ela teima a viver.

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