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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

arlos, Georgina e Frei Dinis. — A peripécia do drama.

Carlos estava meio sentado, meio deitado numa longa cadeira de recosto; Georgina em pé, com os braços cruzados e na atitude de refle­xiva tranqüilidade. Um sol brilhante e ardente, um sol de mato, feria os estreitos vidros da pequena janela que si dava luz àquele quarto: a excessiva claridade era velada por uma longa e ampla cortina.

Carlos lançou de repente a mão a essa cortina e a afastou para avivar a luz do aposento. Um raio agudíssimo de sol foi bater direito no macerado rosto do frade, e refletiu de seus olhos encovados um como relâmpago de ira celeste que fez estremecer os dous amantes.

Não foi porém senão relâmpago: sumiu-se, apagou-se logo. Aque­les olhos ficaram mortais, mudos, fixos, envidraçados como os do ho­mem que acabou de expirar e a quem não cerraram ainda as pálpebras.

E assim mesmo, aqueles olhos tinham o poder magnético de fixar os outros, de os não deixar nem pestanejar.

Curvo, encostado a um bordão grosseiro, o seu chapéu alvadio debaixo do braço, o frade deu alguns passos trêmulos para onde esta­vam os dous, arrastando a custo as soltas alpercatas que davam um som baço e batido, e faziam — não sei por que nem como — estreme­cer a quem as sentia.

Parou a pouca distância, e tirando a voz fraca e tênue, mas vi­brante e solene, do intimo do peito, disse para Carlos:

— Tu maldisseste-me, filho, e eu venho perdoar-te. Tu detesta-me, Carlos, de todos os poderes da tua alma, com toda a energia de teu coração; e eu venho-te dizer que te amo, que tomara dar a minha vida por ti, que do fundo das entranhas se ergue este imenso amor que não tem outro igual, a pedir-te misericórdia, a clamar-te em nome de Deus e da natureza, a pedir-te, por quanto há santo no céu e de res­peito na terra, que levantes essa maldição, filho, de cima da cabeça de um moribundo.

Eram ditas em tal som estas vozes, vinham pronunciadas lá de den­tro da alma com tal veemência, que não lhas articulavam os lábios, rompiam-nos elas e saiam.

O soldado parecia desacordado, confuso e sem inteligência do que ouvia. Georgina impassível até ali, rígida e inabalável com o seu aman­te, sentia comover-se agora daquela angustia do velho. E que partia pedras a dor que vinha naquelas falas sepulcrais, que transudava da­quele rosto cadavérico.

Ao mesmo tempo, um som confuso, um tumulto vago e abafado de mil sons que pareciam enredar-se, encontrando-se, tornando, indo e vindo, e dispersando-se para se tornar a unir, e tornando a dispersar-se enfim, reboava ao longe pela vila, estendia-se nas praças, concentrava-­se nas ruas, e mandava àquela solitária e remota cela do convento uns ecos surdos, como os do mar ao longe quando se retira da praia no murmúrio melancólico que precede um temporal de equinócio.

— Ouves esse burburinho confuso, Carlos? E a tua causa que triunfa, é a destes loucos que sucumbe, é a de Deus que a si mesmo se desamparou. A hora esta chegada, escreveram-se as letras de Baltasar; ­a confusão e a morte reinam sós e senhoras da face da terra. Eu quero ir morrer onde haja Deus... Perdoai-me, Senhor, a blasfêmia!... onde o seu nome não seja profanado e maldito... Ao canto de uma pedra, de­baixo de uma árvore há de ser, nalgum lugar escuso dessas charnecas, onde me não rasguem ao menos esta mortalha, e ma não insultem nos últimos instantes, porque eu sou frade, frade, frade... o maldito frade! Mas frade quero morrer, e hei de morrer. Oh! assim tivera eu vivido!

— Mas que foi, que sucedeu?

— O resto do exército realista evacua neste momento Santarém; vão em fuga para o Alentejo. Os constitucionais venceram na Asseiceira, e tudo esta dito para nós. Para mim, Carlos, falta uma palavra só: que­rerás tu dizê-la?

— Eu?

— Sim, tu Carlos. Revoga as palavras terríveis que proferiste, e em nome de Deus, filho, perdoa a teu...

A Carlos revolvia-se-lhe no peito urna grande luta. O horror, a compaixão, o ódio, a piedade iam e vinham-lhe alternadamente do coração às faces, e tornavam do rosto para o peito. Uma exclamação involuntária lhe rebentou dos lábios em meio deste combate.

— Padre, padre! e quem assassinou meu pai, quem cegou minha avó, e quem cobriu de infâmia a minha... a toda a minha família?

— Tens razão, Carlos, fui eu; eu fiz tudo isso: mata-me. Mas oh! mata-me, mata-me por tuas mãos, e não me maldigas. Mata-me, mata-me. É decreto da divina justiça que seja assim. Oh! assim meu Deus! às mãos dele, Senhor! Seja, e a vossa vontade se faça...

O frade caiu de bruços no chão, e com as mãos postas e estendi­das para o mancebo, clamava:

— Mata-me, mata-me! Aqui há pouca vida já: basta que me po­nhas o pé sobre o pescoço; esmaga assim o réptil venenoso que mordeu na tua família e que fez a tua desgraça e a de quantos o amaram, Sim, Carlos, sê tu o executor das iras divinas. Mata-me. Tantos anos de penitência e de remorsos nada fizeram: mata-me, livra-me de mim e da ira de Deus que me persegue.

XXXV
Reunião de toda a família.—- Explicação dos mistérios. — o coração da mulher. — Parricídio. — Carlos beija enfim a mão a Frei Dinis e abraça a pobre da avó.

Georgina disse para Carlos

— Dá a mão a esse homem, levanta-o e diz-lhe as palavras de perdão que te pede.

Carlos fez um gesto expressivo de horror e de repugnância. Georgina ajoelhou ao pé do frade, tomou as mãos dele nas suas, e lhas afagou com piedade: depois levantou-lhe o rosto, encostou-o a si e gra­dualmente o foi acalmando. O velho parecia uma criança mimada e sentida que se vai acalentando nos braços da mãe; agora só murmurava de vez em quando alguns soluços, a mais e a mais raros.

Estavam de joelhos ambos, o frade e a dama: ele mal se tinha, ela

amparava em seus braços e contra seu peito o amortecido corpo do velho. E Georgina disse com aquele som de voz irresistível que as filhas de Eva herdaram de sua primeira mãe, e que a ela ou lho tinham antes

ensinado os anjos, ou o aprendeu depois da serpente, — um som de

voz que é a última e a mais decisiva das seduções femininas — disse:

— Este homem vai morrer, Carlos; e tu hás de o deixar morrer

assim, meu Carlos?

Todo o ódio, todas as ofensas se calaram, desapareceram diante daquelas palavras do anjo suplicante— Meu Carlos — dito assim, não o

ouvira ele há muito tempo, não lhe pôde resistir: estendeu os braços para o frade, caiu de joelhos ao pé dele, e um só abraço uniu a todos três.

Como no eterno grupo de Laocoonte, o velho e os dous mancebos

sentiam estreitar-se das cobras da mesma dor e afogavam juntos da

mesma angústia.

Assim estiveram longamente: e não se ouvia entre eles senão al­gum gemido solto, e aquele sussurrar sumido das lágrimas que mais se ouve com o coração do que com os ouvidos.

O frade disse enfim com uma voz apenas perceptível de tímida e

de fraca:

— Carlos. meu Carlos, perdoa também... oh! perdoa à memória de tua desgraçada mãe.

O mancebo saltou convulsamente como o cadáver na pilha galvâ­nica. Em pé, hirto, horrível, tremendo, exclamou com um brado de tro­vão:

— Demônio! demônio encarnado em figura de homem, que vieste recordar-me? Dizias bem inda agora, monstro: só às minhas mãos deves morrer. E hás de!

Lançou-se a um enorme velador de pau-santo que lhe jazia ao pé, maça terrível de Hércules, e bastante a fender crânios de ferro, quanto mais a descarnada caveira do frade! De ambas as mãos a levava no ar; e o velho estendeu para ele a cabeça como na ânsia de morrer... Geor­gina fechou involuntariamente os olhos. e um grande e medonho crime e ia consumar-se...

Dous gritos agudíssimos, dous gritos de desespero e de terror, da­queles que só saem da boca do homem quando suspenso entre a morte e a vida —soaram repentinamente no aposento: uma velha decrépita e meia morta, arrastada por uma criança de pouco mais de dezesseis anos, estava diante de Carlos, e ambas cobriam com seus débeis corpos a frágil e extenuada figura da sua vítima.

— Filho, meu filho! — arrancou a velha com estertor do peito: — é teu pai, meu filho. Este homem é teu pai, Carlos.

O ponderoso velador caiu inerte das mãos do mancebo, e rolou pesado e baço pelo pavimento. Carlos caiu por terra sem sentidos. De um pulo Georgina estava ao pé dele, e o fez encostar na longa cadeira de braços. Estava lavado em sangue: era uma ferida do pescoço que o excesso da comoção lhe fizera rebentar. Os dous velhos vieram ajoelhar-se ao pé dele. As duas mulheres moças lidavam pelo restaurar e lhe estancar o sangue. A cambraia dos lenços, as rendas do colo e das cabeças, tudo se fez em ataduras e compressas: o sangue parou enfim.

Admirável beleza do coração feminino, generosa qualidade que to­dos seus infinitos defeitos faz esquecer e perdoar! Essas duas mulheres amavam esse homem. Esse homem não merecia tal amor: não, por Deus! o monstro amava-as a ambas: está tudo dito. E elas que o sa­biam, elas que o sentiam, e que o julgam digno de mil mortes, elas rivalizavam de cuidados e de ânsia para o salvarem.

De tanto não somos capazes nós.

E por isso admiramos tanto.

E perdoamos tanto.

E esquecemos tanto.

Mas amar tanto. não sabemos: verdade, verdade...

Amamos melhor; sim, isso sim: tanto não.

O mancebo permanecia em delíquio. Frei Dinis e a velha rezavam. Georgina e Joaninha — já vereis que era Joaninha — olharam uma para a outra, coraram e ficaram suspensas. A inglesa estendeu a mão à amável criança, estremeceu involuntariamente, mas disse-lhe com firme­za:

— O dito dito, Joaninha! Eu já o não amo; prometo.

— Eu amo-o cada vez mais, Georgina: ele é tão infeliz!

— Juras-me tu de o não deixar, de velar por ele sempre, de o defender de si mesmo que é o pior inimigo que tem?

— Se juro!

— Então adeus, Joaninha! Eu estou de mais aqui. Já tenho ouvido o que não devia ouvir. Os segredos de tua família não me pertencem. O coração desse homem não é meu. nem o quero. É um nobre e grande coração, Joaninha: mas... Não te deixes dominar por ele, se o queres segurar. Adeus! — Santarém está desamparada pelos realistas; eu vou para Lisboa. Consola tua boa avó, e esse pobre velho. Ele não é tão criminoso, estou certa.

— Oh não! Carlos cuida-o assassino de seu pai; e é falso. Minha avó já me disse tudo.

— Falso! — murmurou Carlos sem abrir os olhos: — é falso? Pois não foi ele quem matou meu pai?

— Não, filho — clamou a velha: — não, meu filho; teu pai é este infeliz.

— E minha mãe?

— Tua mãe... e eu somos duas desgraçadas. Que mais queres sa­ber? Tua mãe amou esse homem...

— Ah! — disse Carlos: — ah! — e abriu os olhos pasmados para a avó e para o frade que cravaram os seus no chão, e ficaram como dous réus na presença do seu inflexível juiz.

— Mas esse homem que é... que por força querem que seja meu... meu pai... Santo Deus! ele matou o outro.

— Defendi-me, foi defendendo esta vida miserável... Oh nunca eu o fizera! E para quê? Para que quis eu viver? Para isto!

— E meu tio, o pai de Joaninha? Também esse era preciso que morresse9

— Ambos se juntaram para me assassinar, e me acometeram atraiçoadamente na charneca. Não os conheci; foi de noite, escura e cerra­da. Defendi-me sem saber de quem, e tive a desgraça de salvar a minha vida à custa da deles. Filho, filho, não queiras nunca sentir o que eu senti, quando pegando, um a um, nesses cadáveres para os lançar ao rio, conheci as minhas vitimas... Era inverno, a cheia ia de vale a mon­te: quando abateu e se acharam os corpos já meios desfeitos, ninguém conheceu a morte de que morreram; passaram por se terem afogado. Ninguém mais soube a verdade senão eu — e tua infeliz mãe a quem o disse para meu castigo, a quem vi morrer de pesar e de remorsos, que expirou nos meus braços chorando por ele, e maldizendo-me a mim. Não seria bastante castigo, meu filho? Não foi, não. Este burel que há tantos anos me roça no corpo, estes cilícios que mo desfazem. os jejuns, as vigílias, as orações nada obtiveram ainda de Deus. A sua ira não me deixa, a sua cólera vai até à sepultura sobre mim... Se me perseguirá além dela!...

Fez-se aqui um silêncio horroroso: ninguém respirava: o frade pros­seguiu:

— Não me dei por bastante castigado com a agonia de tua mãe, a mais horrorosa e desesperada agonia que ainda presenciei, ó meu Deus! Tive o cruel ânimo de explicar a tua avó as negras circunstâncias da­quela morte, e de lhe patentear toda a fealdade e hediondez do meu crime. Rasguei-lhe o coração, e vi-lhe sair sangue e água pelos olhos, até que lhe cegaram. Que mais queres? Cuidei que podia morrer sem passar por esta derradeira expiação. Deus não o quis. Aqui estou peni­tente a teus pés, filho. Aqui está o assassino de tua mãe, de seu marido, de teu tio... o algoz e a desonra de tua família toda. Faze de mim como for da tua vontade, Sou teu pai...

— Meu pai!... Misericórdia, meu Deus!

— Misericórdia, filho e perdão para teu pai!

Carlos levantou-se deliberadamente, veio ao velho tomou-o a peso nos braços, foi senta-lo na cadeira que acabava de deixar, e pondo-se de joelhos, beijou-lhe a mão em silêncio. Depois foi abraçar-se com a avó, que o apalpava sofregarnente com as mãos trêmulas, e murmurava baixo:

— Agora, sim, já posso morrer porque o abracei, porque o senti junto a mim, o meu filho, o filho da minha filha querida...

Carlos é que não proferiu mais palavra; tinha-se-lhe rompido corda

no coraçãoque ou lhe quebrara o sentimento ou lho não deixava ex­pressar. Saiu da cela fazendo sinal que vinha logo: mas esperaram-no em vão... não tornou.

Daí a três dias, veio uma carta dele, de junto de Évora, onde estava com o exército constitucional.

XXXVI
Que não se acabou a história de Joaninha. — Processo ao coração de Carlos. — Imoralidade. — Defeito de organização não é imoralidade. — Horror, horror, maldição!— Um barão que não pertence á família lineana dos barões propria­mente ditos.— Porta de Atamarma. — Senatus-consulto santareno. — Nossa Senhora da Vitória aforada. — Trenos sobre Santarém.

— Pois já se acabou a história de Joaninha?

— Não, de todo ainda não.

— Falta multo?

— Também não é muito.

— Seja o que for, acabemos; que está a gente impaciente por sa­ber como se concluiu tudo isso, o que fez o frade, o que foi feito da inglesa, Joaninha e a avó que caminho levaram, e o pobre Carlos se...

— Pois interessam-se por Carlos, um homem imoral, sem princí­pios, sem coração, que fazia a corte — fazer a corte ainda não é nada —que amava duas mulheres ao mesmo tempo? Horror, horror! como dizem os dramáticos românticos: horror e maldição!

— Horror seja, horror será... e horror é, sem divida. E maldição que deitaram ao pobre homem. Mas imoralidade! Imoralidade é enga­nar, é mentir, é atraiçoar; e ele não o fez. Desgraça grande ter um coração assim; mas não me digam que é prova de o não ter. Eu digo que ele tinha coração de mais: o que é um defeito e grande, é um estado patológico anormal. Fisicamente produz a morte; e moralmente pode matar também o sentimento. Bem o creio: mas é moléstia co­mum, e com que vai vivendo muita gente, até que um dia...

— Um dia, o órgão, que progressivamente se foi dilatando, não pode funcionar mais, cessa a circulação e a vida. Deve ser horrível mor­te!

— Falam fisicamente?

— Fisicamente. Mas no moral anda pelo mesmo. E se esse é o defeito de Carlos...

— Sentir muito?

— Não; ter sentido muito: que o coração, como órgão moral, não se dilata a esse ponto senão pelo demasiado excesso e violência de sensações que o gastaram e relaxaram. Se esse é o defeito, a moléstia de Carlos, digo que já sei o fim da sua história sem a ouvir.

— Então qual foi?

— Que um belo dia caiu no indiferentismo absoluto, que se fez o que chamam céptico, que lhe morreu o coração para todo o afeto gene­roso, e que deu em homem político ou em agiota.

— Pode ser.

Mas qual das duas foi, deputado ou barão? Queremos saber...

— Saberão.

— Queremos já.

— E se fossem ambas?

— Ó horror, horror, maldição, inferno! Ferros em brasa, demônios pretos, vermelhos, azuis, de todas as cores! Aqui sim que toda a artilharia grosa do romantismo deve cair em massa sobre esse monstro, esse...

— Esse quê? Poisem se acabando o coração a gente...

— Eu não creio nisso. Acaba-se lá o coração a ninguém!...

Houve gargalhada geral à custa do pobre incrédulo, e levantamo-nos para ir ver o Santo milagre, que era a hora aprazada, e estava o prior à nossa espera.

Amanhã o fim da história da menina dos olhos verdes.

No caminho encontramos o nosso antigo amigo, o Barão de P. — barão de outro gênero, e que não pertence à família lineana que nesta obra procuramos classificar para ilustração do século — cavalheiro generoso, e tipo bem raro já hoje da antiga nobreza das nossas províncias com todos os seus brios e com toda a sua cortesia de outro tempo, que em tanto relevo destaca da grosseria vilã dessas notabilidades improvisadas...

Vinha em nossa procura para nos guiar. Seguimo-lo.

Fomos de passagem observando algumas das mais interessantes coisas daquela interessantíssima terra em que se não pode dar um passo sem que a reflexão ou a imaginação encontre objeto para se entreter. Inclinando um pouco à direita, demos na celebrada porta de Atamarma.

Por aqui entrou D. Afonso Henriques; por aqui foi aquela destemida surpresa que lhe entregou Santarém, e acabou para sempre com o domínio árabe nesta terra.

Os ilustrados munícipes santarenos têm tido por vezes o nobre e generoso pensamento de demolir esta porta! o arco de triunfo de Afonso Henriques, o mais nobre monumento de Portugal!

A idéia é digna da época.

Felizmente parece que tem faltado o dinheiro para a demolição; e o senatus-consulto dos dignos padres conscritos não pôde ainda executar-se.

Não que eu creia este arco o genuíno arco moiresco por onde en­travam os bravos de D. Afonso: mas creio que essa porta da antiga vila se foi reparando, consertando e conservando em suas sucessivas altera­ções, até chegar ao que hoje está: e ainda assim como está, é um mo­numento de respeito que só bárbaros pensariam desacatar e destruir.

Por cima dela está uma capelinha de N. S. da Vitória: quer a tradi­ção que fosse erguida e consagrada à Virgem pelo heróico fundador da monarquia e da independência portuguesa. Este é um dos muitos pon­tos em que a religião das tradições deve ser respeitada e crida sem grandes exames, porque nada ganha a critica em pôr dúvidas, e o espí­rito nacional perde muito em as aceitar.

Deixa-la estar a Virgem da Vitória sobre o arco de Afonso Henri­ques. Prostremo-nos e adoremos, como bons portugueses, o símbolo dai fé cristã e da fé patriótica levantado pelas mãos ensangüentadas do triunfador.

Mas seria ele ou não que levantou essa capelinha? Os documentos faltam, os escritores contemporâneos guardam silêncio; a história deve ser rigorosa e verdadeira...

Deve: e os grandes fatos importantes que fazem época são as bali­zas da história de uma nação; também eu os rejeitarei sem dó quando lhes faltarem essas autênticas indispensáveis. Agora as circunstâncias, para assim dizer, episódicas de um grande feito sabido e provado, quem as conservará se não forem os poetas, as tradições. e o grande poeta de todos, o grande guardador de tradições, o povo?

Eu creio na Senhora da Vitória de Santarém, e em muitos outros santos e santas, que a religião do povo tem por esses nichos e por essas capelas e por esses cruzeiros de Portugal, a recordar memórias de que se não lavrou outro auto, não se escreveu outra escritura, de que não há outro documento, e que os frades croniqueiros não julgaram dever escrever no livro de terça ou de noa, em nenhum livro preto nem en­carnado, porque o tinham por melhor escrito e mais bem guardado nos livros de pedra em que estava.

Coitados! não contaram com os aperfeiçoadores, reparadores e demolidores das futuras civilizações, que, para pôr as coisas em ordem, tiram primeiro tudo do seu lugar.

A câmara de Santarém, não podendo demolir o arco, tomou um meio-termo que aposto que ninguém é capaz de adivinhar. Aforou a capela por cima dele, com altar, com santos e tudo: e assim esteve aforada alguns anos, não sei para quê nem por quê; o caso é que esteve,

O ano passado porém (1842) começou a manifestar-se esta reação religiosa que os especuladores quiseram logo converter em ganância pessoal, descontando-a no mercado das agiotagens facciosas, mas per­dem o seu tempo, inda bem! Veio, digo, esta reação nas idéias das gentes: e a capela da Senhora da Vitória sobre o arco, não sei também como nem porquê, foi desaforada, e restituída ao culto popular.

Subimos a ver a capela por dentro: é um rifacimento ridículo e miserável, sem nenhuma da solenidade do antigo, nem elegância mo­derna alguma.

Desapontou-me tristemente. Vamos ao Santo milagre depressa, que me quero reconciliar com Santarém; e já começa a ser difícil.

Mas é injustiça minha. Que culpa tem ela, coitada?

Ai Santarém, Santarém! abandonaram-te, mataram-te, e agora cospem-te no cadáver.

Santarém, Santarém! levanta a tua cabeça coroada de torres e de mosteiros, de palácios e de templos!

Mira-te no Tejo, princesa das nossas vilas: e verás como eras bela e grande, rica e poderosa entre todas as terras portuguesas.

Ergue-te, esqueleto colossal da nossa grandeza, e mira-te no Tejo: verás como ainda são grandes e fortes esses ossos desconjuntados que te restam.

Ergue-te, esqueleto de morte; levanta a tua foice, sacode os vermes que te poluem, esmaga os répteis que te corroem, as osgas torpes que te babam, as lagartixas peçonhentas que se passeiam atrevidas por teu sepulcro desonrado.

Ergue-te, Santarém, e diz ao ingrato Portugal que te deixe em paz ao menos nas tuas ruínas, mirrar tranqüilamente os teus ossos gloriosos; que te deixe em seus cofres de mármore, sagrados pelos anos e pela veneração antiga, as cinzas dos teus capitães, dos teus letrados e gran­des homens.

Dize-lhes que te não vendam as pedras de teus templos, que não façam palheiros e estrebarias de tuas igrejas; que não mandem os sol­dados jogar a péla com as caveiras dos teus reis, e a bilharda com as canelas dos teus santos.

Tiraram-te os teus magistrados, os teus mestres, os teus seminá­rios... tudo, menos o entulho, e a caliça, as imundícies e os monturos que deixaram acumular em tuas ruas, que espalharam por tuas praças.

Santarém, nobre Santarém, a Liberdade não é inimiga da religião docéu nem da religião da terra. Sem ambas não vive, degenera, corrompe-se, e em seus próprios desvarios se suicida.

A religião do Cristo é a mãe da Liberdade, a religião do patriotismo a sua companheira. O que não respeita os templos, os monumentos de uma e outra, é mau amigo da Liberdade, desonra-a, deixa-a em de­samparo, entrega-a a irrisão e ao ódio do povo

Vamos ao Santo milagre.

XXXVII
A Graça e sua bela fachada gótica. — Sepultura de Pedro Árvores Cabral. —Outro barão que não é dos assinalados.— Igreja do Santo milagre. — Belos medalhões moçirabes.— De como, chegando o prior e o juiz, houve o A. vista do Santo milagre, e com que solenidades. — Monumento da muito alta e poderosa princesa a infanta D. Maria da Assuncão. — Casa onde sucedeu o milagre, convertida em capela de estilo filipino. — O homem das botas, e o que tem ele que haver com o Santo milagre de Santarém. — Admirável e graciosa esperteza na regência do Rossio. - Aaroun-el-Raschid e teori dos governos folgazões, os melhores governos possíveis. — Volta o paládio escalabitano de Lisboa para Sant­arém.

Inclinamos o nosso caminho para a esquerda, e fomos passar diante do arrendado e elegante frontispício gótico da Graça. A ausência de não sei que regedor, ou insignificante personagem de igual impor­tância que tem as chaves da igreja e convento, nos fez perder toda a esperança de visitar a sepultura de Pedro Álvares Cabral, que ali jaz, assim como outras belas e interessantes antigüidades de não menor preço.

Fomos seguindo até casa do barão de A., outro ilegítimo, porque não pertence aos barões assinalados.

Que sem passar além da Taprobana

No velho Portugal edificaram

Novo reino que tanto sublimaram.

Encontramo-lo pronto a acompanhar-nos e a presidir, como juiz da irmandade que é, à grande cerimônia da exposição e ostensão do Santo milagre.

Juntos descemos à igreja, que é perto.

A igreja pequena é do pior gosto moderno por dentro e por fora... Notável não tem nada senão uns quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de homens e mulheres em relevo, que visivelmente perten­ceram a edificação antiga, e que atualmente estão incrustados na tosca alvenaria do cruzeiro.

Os bustos são de puro e finíssimo lavor gótico, altos de relevo e desenhados com uma franqueza que se não encontra em esculturas muito posteriores.

São talvez relíquias da primitiva igreja do Santo milagre que nas sucessivas reedificações se têm ido conservando. Abençoado seja o escrupuloso que as salvou deste último melhoramento que houve no des­graçadoe desgracioso templo; o que não foi há muitos anos por certo.

Chamo gótico ao lavor daquelas cabeças, porque é a frase vulgar e imprópria usada de toda a gente; segundo já observei noutra parte, com mais exação se devera dizer moçárabe.

Chegou o prior, o Sr. juiz deu as suas ordens, vieram uns poucos de irmãos com tochas, distribuíram-nos a cada um de nós a sua, e processionalmente nos dirigimos à porta lateral do altar-mor, da qual se sobe por uma escada assaz larga e cômoda, à espécie de camarim que está paralelo com o mais alto do trono em que perpetuamente se con­serva o grande paládio santareno.

Subimos, acompanhados do prior em sobrepelíz e estola; chegados, ao alto, ajoelhamos em roda dele que subiu a uns degrauzinhos, abriu, com a chave dourada que trazia pendente ao pescoço, uma como porta de sacrário, depois ajoelhou, incensou, tornou a ajoelhar, disse alguns versetos a que respondeu o sacristão, e finalmente tirou de seu repositório uma espécie de âmbula de ouro de fábrica antiga, mas não mais antiga que o décimo sexto, ou décimo quinto século, quando muito.

Depois de nos inclinarmos e receber a benção que o padre nos deitou com a relíquia, foi-nos permitido erguer-nos, e chegar perto para ver e observar.

Entre uns cristais já bem velhos e embaciados se descobre com efeito o pequeno vulto amarelado-escuro que piedosamente se crê ser o resto da partícula consagrada que a judia roubara para seus feitiços.

Escuso contar a história do Santo milagre de Santarém que toda a gente sabe. O bom do prior, ex-fradetrino gordo e bem conservado, não nos perdoou o menor ponto dela, que tivemos de ouvir com a maior compunção.

Encerrada outra vez a âmbula com as mesmas solenidades, entra­mos em conversação com o prior.

Naquele mesmo camarim junto a devota relíquia se conservaram, por espaço de cinco ou seis anos, se bem me recordo do que o bom do pároco nos contou, os restos mortais da senhora infanta D. Maria da Assunção, que falecera em Santarém nos últimos meses da ocupação daquela vila pelas forças realistas. O cadáver, mal embalsamado e com más drogas, foi metido num caixão de folha-de-flandres. Em pouco tempo a corrupção estragou e rompeu a folha, e uma infecção terrível apestava a igreja. Sofreu-se isto anos, representou-se ao governo por vezes, mas nenhuma resolução se pôde obter. Até que afinal, decla­rando o prior que, se não mandavam tomar conta daqueles tristes restos da pobre princesa, ele se via obrigado a metê-los na terra, foi-lhe res­pondido que fizesse como entendesse; e ele entendeu que os devia se­pultar no cruzeiro da igreja, como fez, do lado da epístola, isto e, a direita

E ai jaz em sepultura rasa, sem mais distinção nem epitáfio, a muito alta e poderosa princesa D. Maria, filha do muito alto e poderoso prín­cipe D. João o VI, Rei de Portugal, Imperador do Brasil, e da conquista e navegação etc.

Assim é o mundo, as suas grandezas e as suas glórias!

A visita ao Santo milagre não é completa sem se ir ver a casa onde ele se operou. Conservou-se ela por alguns séculos em grande venera­ção e em mil seiscentos e tantos se converteu por fim em capela. Hoje está abandonada, chove em toda ela, e apenas tem uma má porta que a defende das incursões dos animais. Pena e desleixo grande, porque é elegante e graciosa a capelinha, lavrada de bons mármores, no melhor gosto do décimo sexto século, de renascença já multo adiantada no clássico: é um verdadeiro tipo do estilo filipino, que tanto predomina nessa época em toda a península.

A história do Santo milagre de Santarém muitas vezes tem andado ligada com a história do reino; e já neste século, no tempo da guerra da independência, veio prender com um dos fatos mais importantes, e também com a mais curiosa e cômica aventura de que em Lisboa há memória.

Aludo nada menos que ao homem das botas. E perdoem-me as senhoras beatas a irreverência aparente, que bem sabem não ser eu de motejar com as coisas sérias e santas. Mas o fato é que a história do Santo milagre está ligada com a célebre historia do homem das botas.

Saiba pois o leitor contemporâneo, e saiba a posteridade, para cuja instrução principalmente escrevo este douto livro, que pela invasão de Massena, o grande paládio escalabitano foi mandado recolher a Lisboa, e aí se conservou alguns anos até muito depois da completa retirada dos franceses.

Passado todo o perigo de que o exército invasor roubasse — ou profanasse — que era o mais provável — a santa relíquia, começou a reclamá-la o senado e o povo santareno, e a mostrar muito pouca von­tade de lha restituir o senado e povo ulissiponense. Era uma questão de entre Alba e Roma, que dava sério cuidado aos refletidos. Numas da regência do Rossio.

Em poucas perplexidades tão graves se viu aquele pobre governo que tantas teve, e de quase todas se saiu tão mal.

Não assim desta que a evitou com o mais inesperado e admirável estratagema, digno de ornar os maravilhosos fastos do grande Aaroun­-el-Raschid, ou de qualquer outro príncipe de bom humor, desses pou­cos felizes que em felizes tempos reinaram a brincar, e zombaram com o seu povo, mas fazendo-o rir,

Pois, senhores, apertada se via a regência destes reinos com a restituição do Santo milagre que era de justiça fazer-se a Santarém, mas que Lisboa recusava, e ameaçava impedir. Temia-se alboroto no povo.

Não sei de quem foi o alvitre, mas foi de maganão de bom gosto; e bom gosto teve também o governo em o aceitar e aproveitar. Para o dia em que o Santo milagre devia sair de Lisboa Tejo acima, e que se esperava fosse com grande solenidade e pompa eclesiástica, — fez-se anunciar por cartazes que um fulano de tal passaria o rio, de Lisboa a Almada, em umas botas de cortiça nas quais se teria direito e enxuto navegando a pé sem mais embarcação, vela nem remo.

A logração era gorda e grande; melhor e mais depressa foi engolida. No dia aprazado despovoou-se a capital, e uns em barcos outros por navios, outros por essas praias abaixo, tudo se encheu de gente de todas as classes, e todos passaram o melhor do dia à espera do homem das botas.

No entanto, muito sorrateiramente embarcava o Santo milagre no seu barco de água arriba, navegava com vento e maré para as ditosas ribeiras de Santarém.

Ninguém o viu sair, nem soube novas dele em Lisboa senão quando constou da sua chegada a Santarém, e das grandes festas que lhe fizeram aqueles saudosos e devotos povos ribatejanos.

Os Aarouns-el-Raschids do Rossio riram de socapa: e nunca tão inocentemente riu governo algum de ter enganado o povo.

Nós celebramos a história como ela merecia, e fomos jantar à Alcá­çova, para irmos de tarde ver a Ribeira e procurar os vestígios do seu incuto Alfageme.

XXXVIII
Jantar nos reais paços de Afonso Henriques — Sautes e salmis — Desde o A.

Ribeira de Santarém em busca da tenda do Alfageme — A espada do Condestável — Desapontamento. — O salão elegante Dissipam-se as idéias arqueológicas. Os fósseis. — Tudo melhor quando visto de longe.— O baile público. — Soirée de piano obrigado. — Teatro. Desafinações da prima-dona. Sífilis incurável das traduções. Destempero dos originais. — A xácara de rigor, o subterrâneo e o cemitério. — Sublime galimatias do ridículo. — A bela e necessária palavra “galimatias". — Se as saudades matam. — Perigo de aplicar o escalpelo ou a lente ao mais perfeito das coisas humanas. — De como a lógica é a mais perni­ciosa de todos as incoerências.

Esperava-nos com efeito em casa do nosso bom hóspede, nos ré­gios paços de Afonso Henriques, um esplêndido jantar a que assistiram quase todos os cavalheiros da terra. — Não quero dizer as notabildades, por ser palavra peralvilha a que tenho invencível zanga. — As igua­rias de legítima escola portuguesa, não menos saborosas e delicadas por aparecerem estremes de sautés e salmis estrangeirados. Brilharam sobretudo os produtos das duas grandes vindimas rivais, do Ribatejo e Ribadouro. Foi largo e alegre o jantar.

Acabamos tarde, montamos logo a cavalo, e pela ponta de Ata­marma descemos à Ribeira; era quase sol posto quando lá chegamos.

É o subúrbio democrático da nobre vila, hoje o rico e o forte dela. Faz lembrar aquelas aldeias que se criaram á sombra dos castelos feudais e que, libertas, depois, da opressora proteção, cresceram e engros­saram em substância e força: o castelo, esse está vazio e em ruínas.

Por aqui se faz quase todo o comércio da Estremadura e Beira com o Alentejo. Os habitantes laboriosos e ativos conservam os antigos brios e independência do caráter primitivos é a única pane viva de Santarém.

Cruzamos a povoação em todos os sentidos, procurando rastrear algum vestígio. confrontar algum sítio onde pudéssemos colocar, pela mais atrevida suposição que fosse, a tenda do nosso Alfageme com as suas espadas bem "corrigidas", as suas armaduras luzentes e bem pos­tas — e o jovem Nuno Álvares passeando ali por pé, ao longo do rio — como diz a Crônica — namorado daquela perfeição de trabalho e dando a “correger” a bela espada velha de seu pai ao rústico profeta que tantos vaticínios de grandeza lhe fez, que o saudou condestável, conde de Ourém e salvador da sua pátria.

Nada pudemos descobrir com que a imaginação se iludisse sequer, que nos desse, com mais ou menos anacronismo, uma leve base tão-somente para reconstruirmos a gótica morada do célebre cuteleiro-profeta que a história herdou das crônicas romanescas, e hoje o ro­mance outra vez reclama da história.

Em Santarém há poucas casas particulares que se possam dizer verdadeiramente antigas; na Ribeira, nenhuma. As emplastagens e replastagens sucessivas têm anacronizado tudo. É uma feliz expressão do Sr. Conde de Raczynski21 bem aplicada por ele ao estado de quase todos os nossos monumentos, esta de anacronismo.

Mas ali, na vila alta ou Marvila, no Santarém propriamente dito, há os templos, os conventos, a cerca das muralhas que todavia conservam a fisionomia histórica da terra: aqui nem isso há.

Voltei completamente desapontado da Ribeira, isto é, da sua pedra e cal: gosto imenso da sua gente.

Outra surpresa de mui diferente gênero nos esperava à noite em Marvila, no elegante salão da B. de A., com quem fomos tomar chá.

Em meio das ruínas e desconforto daqueles desertos e mortos par­dieiros circunstantes, ir encontrar uma casa em plena florescência de civilização e de vida; ver a amabilidade e a elegância fazendo graciosamente as honras dela — por mais que se devesse esperar — sempre espanta a primeira vista: parecia golpe de varinha de condão.

Em tão agradável e jovem companhia todas as idéias arqueológicas se desvaneceram, apesar de dous ou três fósseis que ali apareciam para se não perder de todo a cor local talvez.

Largamente se conversou, de Lisboa principalmente, dos nossos mútuos amigos, das festas do último inverno, das probabilidades que se deviam esperar do futuro.

Ralhamos muito da sociedade portuguesa; exaltamos Paris e Lon­dres e não sei se Pequim e Nanquim também, e concluímos que antes Timboctu do que a secante capital do nosso pobre reino. E contudo estávamos com saudades dela: e concessão daqui, concessão dali, vie­mos a que não era tão má terra como isso.

Admirável condição da natureza humana, que tudo nos parece me­lhor e menos feio quando visto de longe!

O baile público mais sensabor, detestável de barulho e confusão em que, para repousar os olhos num rosto conhecido e agradável foi preciso furar por entre centenas de cotovelos bárbaros que se não sabe donde vieram, levar desalmadas pisadelas do dançante noviço, do deputado recém-chegado, e das botas novas do novo diretor da Galocha — e, mais horrível que tudo! ver as absurdas toilettes, os penteados fabulosos, as caras incríveis e as antediluvianas figuras de tanta mulher feia e desastrada..— pois esse mesmo baile, quando já não é senão reminiscência que acorda no meio do enfado ronceiro de uma terra de província, parece outro. As luzes, as flores, a música, toda aquela animação lembra com prazer, o mais esquece, e involuntariamente se descai um pobre homem a suspirar por ele.

A soirée mais maçante, de piano obrigado com dueto das manas polca das primas e cassino das tias velhas — recordada em iguais circunstâncias, também já não acode à memória senão como uma reunião escolhida e íntima, de fácil e doce trato... oh! o verdadeiro prazer da sociedade.

Pois o teatro... Que se lembre alguém na província dos martírios que sofreu o ouvido com os berros da prima-dona, as desafinações do tenor, ou com o enfadonho ressonar daquela adormecida orquestra de S. Carlos!

A enjoativa tradução de uma comédia da rua dos Condes roída de incurável sífilis, figura-se aveludada de todas as graças do estilo de Scri­be.

E o destempero original de um drama plusquam romântico, laure­ado das inacessíveis palmas do Conservatório para eterno abrimento das nossas bocas! Lá de longe aplaude-o a gente com furor, e esquece-se que fumou todo o primeiro ato cá fora, que dormiu no se­gundo, e conversou nos outros, até à infalível cena da xácara, do sub­terrâneo, do cemitério, ou quejanda; em que a dama, soltos os cabelos e em penteador branco, endoudece de rigor, — o galã, passando a mão pela testa, tira do profundo tórax três ahs! do estilo, e promete matar seu próprio pai que lhe apareça, — o centro perde o centro da gravida­de, o barbas arrepela as barbas22... e maldição, maldição, inferno!.. “Ah mulher indigna, tu não sabes que neste peito há um coração, que deste coração saem umas artérias, destas artérias umas veias — e que nestas veias corre sangue... sangue, sangue! Eu quero sangue, porque eu tenho sede, e é de sangue... Ah! pois tu cuidavas? Ajoelha, mulher, que te quero matar... esquartejar, chacinar!” — E a mulher ajoelha, e não há remédio senão aplaudir...

E aplaude-se sempre.

E não é de mim que falo, que eu gosto disto; os outros é que se enfastiam e cansam de tanta barafusta, sempre a mesma...

Mas enfim o que digo é que na província não há tal fastio, que esquece a canseira, e que nem o sublime galimatias do ridículo dali se percebe.

Peço aos ilustres puritanos que, á força de sublimado quinhentista, têm conseguido levar a língua à decrepitude para curar de suas enfer­midades francesas, peço-lhes que me perdoem o galimatias, porque ele é muito mais português que outra coisa. A célebre oração Pro gallo Mathiae deu origem a esta bela e expressiva palavra, que sim foi procriada em francês, mas hoje precisamos cá muito mais bela que em parte nenhuma.

Volto já da digressão filológica: tornemos à ótica e à catótrica.

Grande coisa é a distância.

E dizem que saudades que matam! Saudades dão vida; são a sal­vação de muita coisa que, em seu pleno gozo e posse pacifica, pereceria de inanição ou morreria da opressora moléstia da sociedade.

Por isso eu não gosto de meter o escalpelo no mais perfeito da construção humana, nem de aplicar a lente ao mais fino e delicado da seu funcionar..

Vamos usando destas palavras que herdamos, sem meter louvados

na herança; não suceda descobrirmos que estamos mais pobres do que se cuidava... vamos repetindo estas frases que nos formularam nossos antepassados sem as analisar com muito rigor; não suceda vermos claro demais que temos passado a vida a mentir...

Detesto a filosofia, detesto a razão; e sinceramente creio que num mundo tão desconchavado como este, numa sociedade tão falsa, numa vida tão absurda como a que nos fazem as leis, os costumes, as instituições, as conveniências dela, afetar nas palavras a exatidão, a lógica, a retidão que não há nas coisas, é a maior e mais perniciosa de todas incoerências.

Não falemos mais nisto, que faz mal, e acabemos aqui este capitu­lo.

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