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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Doçuras do vida. — Imaginação e sentimento. — Poetas que morreram moços e poetas que morreram velhos. — Como são escritas estas viagens. — Livro de pedra. Criança que brinca com ele. — Ruínas e reparações. — Idéia fixa do A. em coisas de arte e literárias. — Santa fria ou Irene, e Santarém. — Romance de Santa Iria. — Quantas santas há em Pontu9al deste nome?

Este sonhar acordado, este cismar poético diante dos sublimes espetáculos da natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu às almas de certa têmpera. Doce é gozar assim... mas em que doçuras da vida não predomina sempre o ácido poderoso que estimula! Tirai-lho, fica a insipidez: deixai-lho, ulcera por fim os órgãos: o gozo é mais vivo, porque a ação do estimulo é mais sentida... mas a ulceração cresce, o coração está em carne viva... agora o prazer é martírio.

Infeliz do que chegou a esse estado!

Bem-aventurado o que pode graduar, como Goethe, a dose de anfião que quer tomar, que poupa as sensações e a vida, e economiza as potências de sua alma! Nesses porém é a imaginação que domina, não o sentimento. Byron, Schiller, Camões, o Tasso morreram moços; matou-os o coração. Homero e Goethe, Sófocles e Voltaire acabaram de velhos: sustinha-os a imaginação, que não despende vida porque não gasta sensibilidade.

Imaginar é sonhar, dorme e repousa a vida no entretanto: sentir é viver ativamente, cansa-a e consome-a,

Isto é o que eu pensava — porque não pensava em nada, diva­gava enquanto aqueles versos do Fausto me estavam na memória, e aquela saudosa vista do Tejo e das suas margens diante dos olhos.

Isto pensava, isto escrevo; isto tinha n'alma: isto vai no papel: que doutro modo não sei escrever.

Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Viagens, se te falto, sem o querer, a promessas que julgaste ver nesse título, mas que eu não fiz decerto. Querias talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e larguras dos edifícios? algarismo por algarismo, as datas da sua fundação? que te resumisse a história de cada pedra. de cada ruína?...

Vai-te ao Padre Vasconcelos; e quanto há de Santarém, peta e verdade, ai o acharás em amplo fólio e gorda letra. eu não sei compor desses livros, e quando soubesse, tenho mais que fazer.

Só tenho pena de uma coisa, é de ser tão desastrado com o lápis na mão, porque em dois traços dele te dizia muito mais e melhor do que em tanta palavra que por fim tão pouco diz e tão mal pinta.

Santarém é um livro de pedra em que a mais interessante e mais poética parte das nossas crônicas esta escrita. Rico de iluminuras, de recortados, de florões, de imagens, de arabescos e arrendados primoro­sos, o livro era o mais belo e o mais precioso de Portugal. Encadernado em esmalte de verde e prata pelo Tejo e por suas ribeiras, fechado a broches de bronze por suas fortes muralhas góticas, o magnifico livro devia durar sempre enquanto a mão do Criador se não estendesse para apagar as memórias da criatura,

Mas esta Nínive não foi destruída, esta Pompéia não foi submergida por nenhuma catástrofe grandiosa. O povo, de cuja história ela é o livro, ainda existe; mas esse povo caiu em infância, deram-lhe o livro para brincar, rasgou-o mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios e bonecas, fez carapuços com elas.

Não se descreve por outro modo o que esta gente chamada gover­no, chamada administração, esta fazendo e deixando fazer há mais de século em Santarém.

As ruínas do tempo são tristes mas belas, as que as revoluções trazem ficam marcadas com o cunho solene da história. Mas as brutas degradações e as mais brutas reparações da ignorância, os mesquinhos concertos da arte parasita, esses profanam, tiram todo o prestígio.

Tal é a geral impressão que me faz esta terra. Almocemos, que já oiço chamar para isso, e iremos ver depois se me enganei.

Ao almoço a conversação veio naturalmente a cair no seu objeto mais óbvio, Santarém. D. Afonso Henriques e os seus bravos, S. Frei Gil e o Santo Milagre, o Alfageme e o Condestável, el-rei D. Fernando e a Rainha D. Leonor, Camões desterrado aqui, Frei Luís de Sousa aqui nascido, Pedro Álvares Cabral, os Docems, quase todas as grandes figuras da nossa história passaram em revista. Por fim veio Santa Iria também, a madrinha e padroeira desta terra, cujo nome aqui fez esque­cer o de romanos e celtas.

Quem tem uma idéia fixa, em tudo a mete. A minha idéia fixa em coisas de arte e literárias da nossa península são xácaras e romances populares. Há um de Santa Iria.

Por que é a Santa Iria da trova popular tão diferente da Santa Iria das legendas monásticas?

A trova é esta, segundo agora a retifiquei e apurei pela colação de muitas e várias versões provinciais com a ribatejana ou bordalenga, que em geral é a que mais se deve seguir.

Estando eu á janela coa minha almofada,

Minha agulha d'ouro, meu dedal de prato;

Passa um cavaleiro, pedia pousada:

Meu pai. lho negou: quanto me custava!

— Já vem vindo a noite, é tão só a estrada...

Senhor pai, não digam tal de nossa casa

Que um cavaleira que pede pousada

Se fecha esta porta à noite cerrada.

Roguei e pedi — muito lhe pesava

Mas eu tanto fiz, que por fim deixava

Fui-lhe abrir a porta, mui contente entrava;

Ao lar o levei, logo se assentava.

As mãos lhe dei água, ele se lavava:

Pus-lhe uma toalha, nela se limpava.

Poucas as palavras, que mal me falava,

Mas eu bem senti que ele me mirava.

Fui o erguer os olhos, mal os levantava,

Os seus lindos olhos na terra os pregava.

Fui-lhe pôr a ceia, muito bem ceava;

A cama lhe fiz, nela se deitava.

Dei-lhe as boas-noites, não me replicava:

Tão má cortesia nunca a vi usada!

Lá por meia-noite, que me eu sufocava,

Sinto que me levam coa boca tapada...

Levam-me a cavalo, levam-me abraçada,

Correndo, correndo sempre à desfilada.

Sem abrir os olhos, vi quem me roubava;

Calei-me e chorei — ele não falava.

Dali muito longe que me perguntava:

Eu na minha tenra como me chamava.

— Chamavam-me Iria, Iria a fidalga;

Por aqui agora Iria, a cansada.

Andando, andando, toda a noite andava;

Lá por madrugada que me atentava...

Horas esquecidas comigo lutava;

Nem força nem rogos, tudo lhe mancava.

Tirou do alfange... ali me matava,

Abriu uma cova onde me enterrava.

No fim de sete anos passo o cavaleiro,

Uma linda ermida viu naquele outeiro,

—"Que ermida é aquela, de tanto romeiro?"

—“ É de Santo Iria, que sofreu marteiro."

— 'Minha Santo Iria, meu amor primeiro,

Se me perdoares, serei teu romeiro.”

—"Perdoar não te hei de, ladrão carniceiro,

Que me degolaste que nem um cordeiro."

Ou houve duas santas deste nome, ambas de aventurosa vida e que ambas deixassem longa e profunda memória de sua beleza e martí­rio — o de que não tenho a menor idéia, — ou nos escritos dos frades há muita fabula de sua única invenção deles que o povo não quis acreditar: aliás é inexplicável a singeleza desta tradição oral.

Tão simples, tão natural é a narração poética do romance popular, quanto é complicada e cheia de maravilhas a que se autoriza nas recor­dações eclesiásticas.

O caso é grave, fique para novo capitulo.

XXX
História de Santa Iria segundo os cronistas e segundo o romance popular.

A milagrosa Santa Iria — Santa Irene — que deu o seu nome a Santarém, donzela nobre, natural da antiga Nabância, e freira no con­vento duplex beneditino que pastoreava o santo abade Célio, floresceu pelos meados do sétimo século, Namorou-se dela extremosamente o jovem Britaldo, filho do conde ou cônsul Castinaldo que governava aquelas terras, e não podendo conseguir nada de sua virtude, caiu en­fermo de moléstia que nenhum físico acertava a conhecer, quanto mais a curar.

É sabido que a mais santa lhe não pesa de que estejam a morrer por ela; e, mais ou menos, sempre simpatiza com as vitimas que faz.

Santa Iria resolveu consolar o pobre Britaldo: e já que mais não podia por sua muita virtude, quis ver se lhe tirava aquela louca paixão e o convertia. Saiu, uma bonita manhã, do seu convento — que não guardavam ainda as freiras tão absoluta e estreita clausura — e foi-se á casa do namorado Britaldo.

Consolou como mulher e ralhou como santa, por fim, impondo-lhe na cabeça as lindas e benditas mãos, num instante o sarou de todo achaque do corpo; e se lhe não curou o da alma também, pelo menos lho adormentou, que parecia acabado.

Mas como o demo, em chegando a entrar num corpo humano, parece que não sai dele senão para se ir meter noutro, tão depressa o inimigo deixou ao pobre Britaldo, como logo se foi encaixar em não menor personagem do que o monge Remígio, que era o mestre e dire­tor da bela Iria.

Arde o frade em concupiscência, e não obtendo nada com rogos e lamentos, jurou vingar-se. Disfarçou, porém, fingiu-se emendado, e deu-lhe, quando ela menos cuidava, uma bebida de sua diabólica pre­paração, que apenas a santa a havia tomado, lhe apareceram logo e continuaram a crescer todos os sinais da mais aparente maternidade.

Corre a fama do suposto estado da donzela, chovem as injúrias e os insultos dos que mais a tinham respeitado até então. E Britaldo, que se julga escarnecido pela hipocrisia daquela mulher artificiosa, em vez de a esquecer com desprezo — sente reviver-lhe, se não tão pura, muito mais ardente, toda a antiga paixão.

Tão misterioso é o coração do homem! — tão vil! dirão os ascéti­cos — tão inexplicável! direi eu com os mais tolerantes.

Novas tentativas, promessas, ameaças do furioso amante... A santa resiste a tudo, forte na sua virtude.

Costumava a devota donzela ir todas as noites a uma oculta lapa que jazia no fim da cerca e junto ao rio Nabão, para ali estar mais só com Deus, e desabafar com Ele à sua vontade. Soube-o Britaldo, espreitou a ocasião e ali a fez apunhalar por um seu criado, cujo nome a legenda nos conservou para maior testemunho de verdade.. chamava-se Banam.

Banam! é um verdadeiro nome de melodrama.

Morta a inocente, Banam despiu-lhe o habito e lançou o corpo ao rio, que depressa o levou às arrebatadas correntes do Zézere em que deságua; e logo este ao Tejo - que defronte da antiga Escalabiscastro lhe deu sepultura em suas louras areias, para maior glória da santa e perpétua honra da nobilíssima vila que hoje tem o seu nome.

Mas enquanto ia navegando o corpo da santa, teve Célio, o abade do convento, uma revelação que lhe descobriu a verdade e os milagres do caso; e comunicando-a logo aos monges e ao povo de Nabância, saiu com todos de cruz alçada, e foi por esses campos da Golegã fora, até chegar à Ribeira de Santarém. Ai, benzendo as águas do rio, estas se retiraram corteses e deixaram ver o sepulcro que era de fino alabas­tro, obrado à maravilha pelas mãos dos anjos.

Chegaram ao pé do túmulo, abriram-no, viram e tocaram o corpo da santa, mas não o puderam tirar, por mais diligências que fizeram. Conheceu-se que era milagre; e contentando-se de levar relíquias dos cabelos e da túnica, voltaram todos para a sua terra.

As águas tornaram a juntar-se e a correr como dantes, e nunca mais se abriram senão dai a seis séculos e meio, quando a boa rainha Santa Isabel, mulher del-rei D. Dinis, tão fervorosas orações fez ao pé do rio pedindo à santa que lhe aparecesse, que o rio tornou a abrir-se como o mar Vermelho á voz de Moisés, dizem os devotos cronistas, e patenteou o bendito sepulcro.

Entrou a rainha a pé enxuto pelo rio dentro, seguida de seu real esposo e de toda a sua corte; mas por mais que rezasse ela, e que trabalhassem os outros com todas as forças humanas, não puderam abrir o túmulo; quebraram todas as ferramentas, era impossível. Desenganado el-rei de que um poder sobre-humano não permitia que ele se abrisse, mandou a toda a pressa levantar um padrão muito alto sobre o mesmo túmulo, e tão alto que o rio na maior enchente o não pudesse cobrir.

O rio esperou com toda a paciência que os pedreiros acabassem e quando viu que podia continuar a correr, deu aviso, retiraram-se todos, tornaram-se a juntar as águas e o padrão ficou sobressaindo por cima delas.

Passaram mais três séculos e meio; e no ano de 1644 a Câmara de Santarém mandou refazer de cantaria lavrada o dito marco ou pedestal, que não era senão de alvenaria, e pôr-lhe em cima a imagem da santa.

Ainda lá está, assaz mal cuidado contudo; lá o vi com estes olhos pecadores no corrente mês de julho de 1843. Mas, sem milagre nem orações, o rio tinha-se retirado havia muito, para um cantinho do seu leito, e o padrão estava perfeitamente em seco, e em seco está todo o ano até começarem as cheias.

Tal é, em fidelíssimo resumo, a história da Santa Iria dos livros.

A das cantigas é, como já disse, muito outra e muito mais simples; conta-se em duas palavras. A santa está em casa de seus pais: um cava­leiro desconhecido, a quem dão pousada uma noite, levanta-se por ho­ras mortas, rouba a descuidada e inocente donzela, foge a todo o correr de seu cavalo, e chegando a um descampado dali muito longe, pre­tende fazer-lhe violência... A santa resiste, ele mata-a. Dali a anos passa por ai o indigno cavaleiro, vê uma linda ermida levantada no próprio sítio onde cometeu o crime, pergunta de que santa é, dizem-lhe que é de Santa Iria. Ele cai de joelhos a pedir perdão à santa, que lhe lança em rosto o seu pecado e o amaldiçoa.

E acabou a história.

Seria o povo que se esqueceu nas suas tradições, ou os frades que aumentaram nas suas escrituras? Pois a legenda monástica é realmente bela e cheia de poesia e romance, coisas que o povo não costuma desprezar.

É difícil de explicar-se este fenômeno, interessantíssimo para qualquer observador não vulgar, que nestas crenças do comum, nestas anti­gualhas, desprezadas pela soberba filosofia dos néscios, quer estudar os homens e as nações e as idades onde eles mais sinceramente se mos­tram e se deixam conhecer.

A extrema simplicidade do romance ou xácara de Santa Iria, o ser ele, dentre todos os que andam na memória do nosso povo, o mais geralmente sabido e mais uniformemente repetido em todos os distritos do reino, e com poucas variantes nas palavras, nenhuma no contexto, me faz crer que esta seja das mais antigas composições não só da nossa língua, mas de toda a península. A frase tem pouco sabor antigo: este é um daqueles poemas quase aborígines que a tradição tem vindo entre­gando, e ao mesmo tempo traduzindo, de pais a filhos insensivelmente; e também não é por certo dos que desceram do palácio às choupanas e fugiram da cidade para as aldeias, como em muitos outros se conhece; este visivelmente nasceu nos arraiais, nos oragos dos campos, e por lá tem vivido até agora.

A forma métrica da composição é a que a frase didática das Espa­nhas chamou romance em endechas. Eu, adotando para ele, mais que para a forma ordinária do metro octossílabo, a teoria do engenhoso filólogo alemão, Deepping, tão benemérito da nossa literatura peninsu­lar, creio que estes são verdadeiros versos de doze silabas, e que as copias não constam senão de dous versos cada uma, segundo a óbvia significação da palavra. O povo cantando não separa os hemistíquios destes versos como fazem os que os escrevem: e ao contrário nos ro­mances da medida mais comum, o canto popular reparte distintamente cada membro de oito silabas sobre si.

Não sei se me engano, mas desconfio que as quatro copias últimas, em que muda completamente a rima, sejam aditamento posterior feito à cantiga original. Todavia estes oito versos aparecem, com ligeiras varian­tes, em toda a parte

XXXI
Quomodo sedet sola civitas. — Santarém, Portugal em verso e Portugal em prosa.— Esquisito lavar de umas panos e janelas de arquitetura moçárabe. — Busto de D. Afonso Henriques. — As salgadeiras de África.—- Porta do Sol. — Mura­lhas de Santarém. — Voltemos à história de Frei Dinis e da menina dos olhos verdes.

Eram mais de dez horas da manhã quando saímos a começar a longa via sacra de relíquias, templos e monumentos que são hoje toda Santarém.

A vida palpitante e atual acabou aqui inteiramente: hoje é um livro que só recorda o que foi, Entre a história maravilhosa do passado, que todas estas pedras memoram, e as profecias tremendas do futuro, que parecem gravadas nelas em caracteres misteriosos, não há mais nada: o presente não é, ou é como se não fosse; tão pequeno, tão mesquinho, tão insignificante, tão desproporcionado parece a tudo isto.

Da vontade de entoar com o poeta inspirado de Jerusalém: Quo modo sedet sola civitas! Portugal é, foi sempre, uma nação de milagre. de poesia. Desfizeram o prestigio; veremos como ele vive em prosa. Morrer, não morre a terra, nem a família. nem as raças: mas as nações deixam de existir. — Pois embora, já que assim o querem. A mim não me fica escrúpulo.

Passamos a igreja da Alcáçova. que achamos já fechada; e to­mando sempre sobre a esquerda, fomos pelo que hoje parece uma azi­nhaga de entre quintas, mas que visivelmente foi noutras eras a rua mais fashionável desta vila cortesã. Aqui estão quase ao pé da igreja umas portas e janelas do mais fino lavor e gosto moçárabe que me lembra de ter visto.

E a propósito, por que se não há de adotar na nossa península esta designação de moçarabe para caracterizar e classificar o gênero arquite­tônico especial nosso, em que o severo pensamento cristão da arquite­tura da Meia Idade se sente relaxar pelo contato e exemplo dos hábitos sensuais moirescos, e de sua luxuosa e redundante elegância?

De que palácio encantado foram estas portas tão primorosamente lavradas? Que belezas se debruçaram dessas arrendadas janelas para ver passar o cavaleiro escolhido do seu coração? São tão lindas, tão elegantes ainda estas pedras desconjuntadas, e mal sustidas de um muro insosso e grosseiro que as faceia, que naturalmente despertam a mais adormecida imaginação a quanto sonho de fadas e trovadores a poesia fez nascer dos mistérios da Idade Média.

Pouco mais adiante está, em um mau nicho escalavrado e feio, um pretendido busto de D. Afonso Henriques, a que atribuem grande anti­güidade. Não me fez esse efeito a mim.

Chegamos à porta do Sol: sentamo-nos ali a gozar da majestosa vista. É majestosa mas triste. A ribanceira que dali corta abaixo, até ao rio, é árida e quase calva: cobrem-na apenas, como a mal povoada nuca de um velho, alguns tufos de verdura cinzenta e grisalha de um arbusto rasteiro, meio frutex meio herbáceo, que aqui chamam "Salga­deira" e que a tradição diz ter vindo de África para segurar a terra nestes taludes e precipícios. O aspecto e hábito da planta é realmente africano e oriental, não tem nada de europeu. Mas esta derradeira e ocidental parte da nossa Espanha é, geologicamente falando, já tão Áfri­ca, tão pouco Europa. que não seria necessária a transplantação talvez; e porventura ficou esta memória entre o povo do uso que os moiros faziam da planta para esse fim,

Esta porta do Sol dizem que é onde se faziam as execuções em tempos antigos. Foi bem escolhido o sitio; não o há mais triste e melan­cólico. Ao pé está um torreão quadrado da muralha que aí forma canto para seguir depois na direção de sul a norte. Deste lado as fortificações e lanços de muro estão todas pouco estragadas; e do mirante a que subimos, pode-se formar perfeita idéia do que era uma antiga cidade murada.

Seria aqui, dizia eu comigo, que o nosso Frei Dinis de quem já tenho saudades — o velho guardião de S. Francisco — veio chorar o seu último treno sobre as ruínas da antiga monarquia? Seria aqui neste lugar de desolação e melancolia que correram as suas derradeiras lágrimas! Ele, que já não chorava, acharia aqui quem desse aos seus olhos as fontes de água que o coração lhe pedia para se desafogar dos pesa­res que o ralavam na aridez e secura de sua desconsolada velhice?

Passavam-me estas idéias pelo pensamento quando o historiador que tantos capítulos nos reteve no vale, contando-nos os sucessos de Joaninha e da sua família, nos disse:

Sentemo-nos aqui na sombra que faz esta muralha e acabemos a história da menina dos rouxinóis. De tarde vamos à Ribeira saudar a memória do Alfageme. Amanhã de manhã está detalhado que iremos ver a Graça, o Santo milagre, S. Domingos e S. Francisco. Concluamos hoje esta história.

— Seja, respondemos nós.

Entraremos portanto em novo capitulo, leitor amigo; e agora não tenhas medo das minhas digressões fatais, nem das interrupções a que sou sujeito. Irá direita e corrente a história da nossa Joaninha até que a terminemos... em bem ou em mal? Dantes um romance, um drama em que não morria ninguém, era havido por sensabor; hoje há um certo horror ao trágico, ao funesto que perfeitamente quadra ao século das comodidades materiais em que vivemos.

Pois, amigo e benévolo leitor, eu nem em princípios nem em fins tenho escola a que esteja sujeito, e hei de contar o caso como ele foi.

Escuta.

XXXII
Tornamos à história de Joaninha. — Preparativos de guerra. — A morte. — Carl­os ferido e prisioneiro. — O hospital. — O enfermeiro. — Georgina.

— Escuta! — disse eu ao leitor benévolo no fim do último capítulo. Mas não basta ­que escute, é preciso que tenha a bondade de se recordar do que ouviu no capitulo XXV e da situação em que ai deixa­mos os dous primos, Carlos e Joaninha.

Neste despropositado e inclassificável livro das minhas Viagens, não é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo, que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir em tão embaraçada meada.

Vamos pois com paciência, caro leitor; farei por ser breve e ir di­reito quanto eu puder.

Lembra-te como numa noite pura, serena e estrelada, aqueles dous se despediram um do outro no meio do vale, como se despediram trist­es, duvidosos,. infelizes, e já outros, tão outros do que dantes foram.

Nessa mesma noite, a ordenada confusão de um grande movi­mento de guerra reinava nos postos dos constitucionais. A longa apatia de tantos meses sucedia uma inesperada atividade. Preparavam-se os sanguinolentos combates de Pernes e de Almoster, que não foram deci­sivos logo, mas que tanto apressaram o termo da contenda.

Carlos achou ordem de se apresentar no quartel general; partiu imediatamente. O pensamento absorvido por idéias tão diferentes, tão confuso, tão alheado de si mesmo, seguiu maquinalmente o corpo. Foi, chegou, recebeu as instruções que lhe deram, e voltou mais satisfeito, mais tranqüilo.

Tratava-se de morrer. Não sabe o que é verdadeira angústia d'alma o que ainda não abençoou a morte que viu diante de si, o que a não invocou ainda como único remédio de seu mal, ou, o que é mais de­sesperado, como única saída de suas fatais perplexidades.

Estes momentos são raros na vida, é certo; mas quando ocorrem, não há exageração nenhuma em dizer que antes, muito antes a morte do que eles.

Oh! ese a morte que se contempla é de honra e glória, se o entu­siasmo, tirando fortemente a corda dos nervos, os faz vibrar naqueles tons secretos e misteriosos que arrebatam, e elevam o coração do ho­mem a sublime abnegação de si e de tudo o que é pequeno, baixo e vil na sua natureza — oh então a morte parece um triunfo. uma bem­-aventurança por certo!

Carlos esqueceu-se de tudo, menos da sua espada, que afiou com escrupuloso cuidado, e das suas boas e seguras pistolas inglesas que limpou minuciosamente, carregou e escorvou com um verdadeiro amor de artista que se compraz no ultimo acabamento de um trabalho predileto.

O pouco da noite que lhe restava passou-se nisto; a marcha começou antes do dia. E os primeiros raios do sol foram saudados pelo fuzilar das espingardas e pelo trovejar dos canhões.

Combateu-se larga e encarniçadamente — como entre irmãos que se odeiam de todo o ódio que já foi amor, — o mais cruel ódio que tem a natureza!

O dia declinava já, quando num hospital em Santarém entravam muitas macas de feridos, e entre eles, um todo crivado de balas e coberto de sangue que, assim pelos restos do uniforme como por certo ar bem conhecido — e característico então — se via claramente ser do exército constitucional.

Eram muitas e perigosas as feridas desse homem; estenderam-no numa espécie de tarimba sobre que havia alguma palha, e quando lhe chegou a sua vez foi examinado e pensado como os outros. Não dava sinal de padecer, tinha os olhos fechados, o pulso forte mas não agitado de febre; não proferia uma silaba, não soltava um ai, e prestava-se a tudo o que lhe diziam e faziam, menos a soltar da mão esquerda, que apertava contra o peito o que quer que fosse que ali tinha seguro e que lhe pendia ao pescoço de uma estreita fita preta.

Assim o deixaram largo tempo: ele adormeceu, Não seria largo, mas foi profundo o seu dormir. Quando acordou já se não viu no vasto caravançarai daquele confuso hospital, mas num pequeno quarto areja­do, limpo, quase confortável que em tudo parecia cela de convento, menos na boa cama em que jazia o doente, e na extremada elegância do enfermeiro que o velava.

O quarto era com efeito uma cela do convento de S. Francisco em Santarém, o doente o nosso Carlos; e o enfermeiro que o velava, uma bela mulher de estatura não acima de ordinária, mas nem uma linha menos, envolvida nas amplíssimas pregas de um longo roupão de seda daquela acertada cor que, em dialeto da rua Vivienne, se diz scabieuse; a cabeça toucada de finíssima Bruxelas, com uns laços de preto e cor de granada que realçavam a transparência das rendas, a infinita graça dos longos e ondeados anéis louros do cabelo, e a pureza simétrica de um rosto oval, clássico, perfeito, sem grande mobilidade de expressão, mas belo, quanto pode ser belo um rosto em que pouco da alma se reflete, e em que a serena languidez de uns olhos azuis entibia e mo dera a energia do sentimento, que não é menos profundo talvez, mas certamente se expande menos.

De joelhos junto ao leito de Carlos, com a mão direita dele nas suas, os olhos secos mas fixos nas descaídas pálpebras do soldado, aquela mulher estava ali como a estátua da dor e da ansiedade. A uma porta interior e que abria para uma espécie de alcova obscura, em pé, os braços cruzados e metidos nas mangas. o capuz na cabeça, estava um frade velho, alto mas curvado do peso dos anos ou dos sofrimentos.

O frade contemplava o enfermo e a enfermeira, mas visivelmente não queria ser visto nessa ocupação, porque ao menor estremecimento do doente recuava apressado e como assustado para o interior da sua alcova.

Uma só vela de cera alumiava este quadro, acidentando-o de fortes sombras, e dando-lhe um tom de solenidade verdadeiramente mágico e sublime.

Carlos segurava ainda na esquerda com o mesmo aferro o relicário ou talismã, ou o que quer que era que não queria desprender de seu coração. A bela enfermeira beijava de vez em quando aquela mão tenaz que estremecia a cada beijo, por mais suave e mimoso que fosse o leve contato desses lábios delicados.

A outra mão estava nas mãos dela, mas era insensível a tudo, essa. O silêncio era o do sepulcro: só se ouvia o respirar incerto e des­compassado do enfermo.

De repente Carlos entreabriu as pálpebras e exclamou em inglês: Oh Georgina, Georgina, 1 love you stiIl. — (Georgina, Georgina, eu ainda te amo.)

Duas lágrimas — duas pérolas, destas que se criam com tanta dor no coração e que às vezes saem com tanto prazer dos olhos — rompe­ram do celeste azul dos olhos da dama e suavemente correram por aquelas faces de urna alvura pálida e mortal

Carlos acordou de todo, abriu os olhos e cravou-os fixamente no rosto angélico dessa mulher.

Esteve assim minutos: ela não dizia nada nem de voz nem de ges­tos: falavam-lhe só as lágrimas que corriam quietas, quietas, como corre uma fonte perene e nativa de água que mana sem esforço nem ímpeto, por um declive natural e fácil.

— Onde estou eu, Georgina?

— Nos meus braços.

— Que me sucedeu?

— Que não podes ser feliz senão neles: bem sabes, Sei..: devia saber,

— Devias: só agora hás de sabe-lo, O passado...

— O passado! qual?

— O passado deixou de existir.

— E o futuro?

— Eu não creio no futuro.

— Porquê?

— Porque tu me disseste que não cresse. Eu!... Eu sou um...

— Um homem. Oh!

— Basta e descansa. Amanha falaremos.

— Estou ferido, muito; e dói-me agora... não me doía.

— Estás, mas sem perigo: e estou eu aqui'. Dorme.

— Não posso. Que casa é esta?

— S. Francisco de Santarém.

— Deus de misericórdia!

— És prisioneiro: sara e eu te livrarei.

— Tu? E tu aqui, como?

— Vim buscar-te, e achei-te assim.

— Georgina!

— Que tens tu ai tão seguro na mão esquerda?

— Vê: a medalha com o teu cabelo.

— Então amas-me tu ainda?

— Se te amo! Como no primeiro...

— Não mintas, Carlos... E dorme.

— O meu Deus, meu Deus! Georgina aqui, eu neste estado e... E a minha gente?

— A tua gente está salva.

— Aonde?

— Aqui mesmo, em Santarém.

— Quero... não quero. Oh sim, quero mas é morrer. Tende mise­ricórdia de mim, meu Deus!

— Sossega, Carlos.

Mas Carlos não sossegava; emudeceu porque a torrente de seus pensamentos, o encontrado deles, e o inesperado daquela situação lhe embargavam a voz, e o quebrantamento das forças lhe tolhia os movimentos do corpo: mas o espírito inquieto e alvoroçado revolvia-se dentro com um frenesi louco. Era de pasmar o que ele sofria.

À força de bebidas calmantes o acesso diminuiu, a noite passou mais tranqüila; e pela manhã o doente não dava cuidado ao facultativo que o veio ver.

Proibiram-lhe falar; e Georgina tinha a coragem de lhe resistir, de lhe não responder todas as vezes que ele tentava quebrar o preceito de que dependia a sua vida... e a dela, porque a infeliz amava-o... oh! amava-o como se não ama senão uma vez neste mundo.

Passaram dias, semanas. Carlos estava melhor, estava salvo: Geor­gina pode dizer-lhe um dia:

— Carlos, meu Carlos, tu estas livre de perigo, vou restituir-te aos teus.

— Os meus!

— Os teus. Tua avó, tua prima...

— Joaninha! oh! Joaninha...

— Tua avó, que também tem estado a morrer, mas que enfim está escapa, ignora que tu estejas aqui. Ocultamo-lo igualmente a tua prima.

— Ah!

— Sim, assentamos de lho não dizer a uma nem a outra até que tivéssemos certeza da tua melhora. Hoje porém vais vê-las. E eu...

— Tu!

— Eu não tenho aqui mais nada que fazer,

— Georgina!

— Carlos!

— Tu já me não amas?

— Não.

Seguiu-se um silêncio torvo e abafado como o da calma que pre­cede as grandes tempestades. O rosto de Georgina estava impassível. Carlos estorcia-se debaixo de uma compressão horrível e incapaz de se descrever.

XXXIII
Carlos e Georgina. Explicação. — Já te não amo! Palavra terrível. — Que o amor verdadeiro não é cego. — Frade no caso outra vez- Ece iterum Cnspinus; cá está o nosso Frei Dinis conosco­

— Tu já me não amas, Georgina, tu? — exclamou Carlos depois de uma longa e penosa luta consigo mesmo: — Já me não amas tu, Georgina? Já não sou nada para ti neste mundo? Aquele amor cego, louco, infinito, que derramavas em torrentes sobre a minha alma, em que trasbordava o teu coração; aquele amor que eu cheguei a persuadir-me que era o maior, o mais sincero, talvez o único verdadeiro amor de mulher que ainda houve no mundo, esse amor acabou, Geor­gina? Secou-se no teu peito a fonte celeste donde manava? Nem as recordações de nossa passada felicidade, nem as memórias dos cruéis lances que nos custou, dos sacrifícios tremendos que por mim fizeste, nada, nada pode acordar na tua alma um eco, um eco sumido que fosse, da antiga harmonia de nossas vidas — da nossa vida, Georgina, porque nós chegamos a confundir num só os dois seres da nossa exis­tência. — Oh! por que vivi eu até este dia? E tu, tu que refinada cruel­dade te inspirou o salvar uma vida que tinhas condenado, que tinhas sacrificado quando a separaste da tua?

— Carlos respondeu Georgina com a fria mas compassiva pie­dade que mais o desesperava: — Carlos, não abuses da pouca saúde que ainda tens. O esforço d'alma que estás fazendo pode-te ser prejudicial. Sossega. Tu iludes-te, e sem querer, procuras iludir-me também a mim. Entra em ti, Carlos, e discorramos pausadamente sobre a nossa situação, que não é agradável por certo nem para um nem para outro, mas que pode suportar-se se tivermos juízo para a encarar toda e sem medo, e para nos convencermos com lealdade e franqueza do que ela realmente é. Ouve-me, Carlos: tu amaste-me muito...

— Ó como! o quanto! Nenhum homem...

— Poucos homens, é certo, amaram ainda como tu... quem sabe! talvez nenhum. Não quero perder esta última ilusão... já não tenho ou­tra... Talvez nenhum amou como tu me amaste ou... cuidaste amar-me. Eu... oh! eu quis-te... pelo eterno Deus que me ouve! eu quis-te com uma cegueira de alma, numa singeleza de coração, com um abandono tão completo, uma abnegação tão inteira de mim mesma, que real­mente creio, este é o amor que só a Deus se deve, que só ao Criador a criatura pode consagrar licitamente. Bem castigada estou: mereci-o.

— Georgina, Georgina!

— Deixa-me, quero desabafar eu também agora. Ouve-me, tens obrigação de me ouvir. Se te dei provas deste amor, tu o sabes: se desde que te amei, uma palavra, um gesto, um pensamento único, um só e o mais leve relampejar da imaginação desmentiu em mim desta absoluta e exclusiva dedicação de todo o meu ser... dize-o tu.

— Não, minha alma, não, minha vida, não: tu és um anjo. tu és...

— Sou uma mulher que te amava como creio que ordinariamente se não ama.

— Não, certo, não.

— Fomos felizes, é verdade; e creio que poucos amantes ainda foram tão felizes como nós nos breves dias que isto durou. - Tu partiste para a tua ilha; era forçoso partir, conheci-o e resignei-me. Consolavam-me as tuas cartas de fogo, escritas, oh! se o eram! escritas com o mais puro sangue do teu coração. Nunca duvidei do que elas me diziam: não se mente assim, tu não mentias então. E falso que o amor seja cego; o amor vulgar pode sê-lo, amor como o meu, o amor verda­deiro tem olhos de lince: eu bem via que era amada. Nunca me escre­veste a protestar fidelidade, e eu sabia, eu via que tu me eras fiel. Assim passaram meses, anos. Na ilha e no Porto foste o mesmo. Eu padecia muito, mas confortava-me, vivia de esperanças... triste viver mas doce! Enfim vieste para Lisboa, para aqui... e as tuas cartas que não eram menos ternas nem menos apaixonadas...

— Se eu nunca deixei, nem um momento...

Com um gesto expressivo, e de suave mas resoluta denegação, Georgina pôs a mão na boca do pobre Carlos, como para o impedir de dizer uma blasfêmia. Ele segurou-a com as suas ambas e lha beijou mil vezes com um arrebatamento, uma fúria, num paroxismo de lágrimas e de soluços, que partiriam o coração ao mais indiferente. Comoveu-se, vacilou a inalterável rigidez do belo rosto da dama, abaixaram-se as longas pálpebras de seus olhos; mas se chegou até eles alguma lágrima mais rebelde, pronta refluiu para o coração, porque ao levantá-los outra vez e ao fixá-los tranqüilamente nos do seu amante, aqueles olhos pu­ros, celestes e austeros como os de um anjo ofendido, estavam secos.

Ela continuou:

— As tuas cartas, que não eram menos ternas nem menos apaixo­nadas, começaram todavia a ser menos naturais, mais encarecidas... eram menos verdadeiras por força. Senti-o, vi-o, e cuidei morrer. Uma família da minha amizade vinha então para Portugal, acompanhei-a. Apenas cheguei, procurei e obtive os meios seguros de transitar pelos dois campos contendores: pressagiava-me o coração que mehavia de ser preciso. E foi; cheguei ao vale no dia em que tu o deixavas para aquela fatal ação que te ia custando a vida. Vim-te encontrar prisioneiro e meio morto no hospital dos feridos. Ao pé de ti estava um frade.

— Um frade! Meu Deus! seria ele?

— Era ele.

— Pois tu sabes?...

— Sei! eu disse-lhe quem era e o que tu me eras...

— Tu a ele... disseste?...

— Disse. Não sei se fiz mal ou bem, sei que me não importava o que fazia. Vi depois que me não enganara na confiança que pusera nele. Trouxemos-te para este convento, tratamos de ti, conseguimos salvar-te a vida... E enquanto esse cuidado me livrava de outros fui... fuifeliz. A tua gente... a tuafamília do vale também veio para Santarém... tua avó e tua prima, Carlos...

— Joaninha! Joaninha está aqui?

— Está; sossega: e já to disse, logo a veras.

— Eu! Eu para quê? Eu não quero...

— Quero eu: hás de vê-la. Já sabes que sei tudo.

— Tudo o quê, Georgina?

— Queres que to repita? Repetirei. Que tu amas tua prima que ela te adora. E por Deus, Carlos, eu já lhe quero como se fora minha irmã. Entendes bem que te não amo? Compreendes agora que tudo acabou entre nós, e que não vejo, não posso ver em ti já senão o esposo, o marido da inocente criança que tomei debaixo da minha proteção, e a quem juro que hás de pertencer tu?

— Juras falso.

— Como assim! Pois queres mais vitimas? Nãoestás satisfeito com

a minha ruma? Eu ao menos não sou do teu sangue. E essa velha

decrépita que é tua avó, que duas vezes foi em verdade tua mãe por­que te criou — essa inocente que te ama na singeleza do seu coração...e esse pobre frade velho...

— Oh! aqui anda ele, bem o vejo, aqui anda o gênio mau da minha família. Maldito sejas tu, frade!

O desgraçado não acabara bem de pronunciar estas palavras, quando a porta da alcova se abriu de par em par, e a rígida, ascética figura de Frei Dinis estava diante dele.

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