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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Novo Gênesis.— O Adão social muito diferente do Adão natural. — Carlos sempre um por seus bons instintos, sempre outro por suas más reflexões. — De como Joaninha recebeu o primo com os braços abertos, e do mais que entre eles se passou. — Dor meia dor, meio prazer.

Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices.

O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.

Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado e proscrito. hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.

Destas duas tão apostas atuações constantes, que já per si sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sis­tema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais desvairada, encontrado de repugnâncias a qual mais aposta. E va­zado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparata­do, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe, invertendo com blasfemo arremedo as palavras de Deus Criador:

"De nenhuma árvore da horta comendo comerás:

"Porém da árvore da ciência do bem e do mal dela só comerás se quiseres viver."

Indigestão de ciência que não comutou seu mau estômago, presun­ção e vaidade que dela se originaram — tal foi o resultado daquele preceito a que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.

E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o desejo de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso de suas formas,

Ou há de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.

Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências da outra pátria mais antiga, e tendiamtanto a aproximar-se do primitivo tipo que saíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado aperto das constrições sociais, e regenerar-se na santa liberdade da na­tureza, como era o nosso Carlos.

Mas o melhor e o mais generoso. dos homens segundo a sociedade, é ainda mais fraco, falso e acanhado.

Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua alma lhe tinha custado duros castigos, severas e injustas condenações desse grande juiz hipócrita, mentiroso e venal... o mundo.

Carlos estava quase como os mais homens... ainda era bom e ver­dadeiro no primeiro impulso de sua natureza excepcional; mas a refle­xão descia-o á vulgaridade da fraqueza. da hipocrisia, da mentira co­mum.

Dos melhores era, mas era homem,

Os seus pensamentos, as suas considerações em toda aquela noite, em todoo dia que a seguira, na hora mesma em que ia encontrar-se com o objeto que mais lhe prendia agora o espirito, senão é que tam­bém o coração, todas participavam daquela flutuação inquieta e doentia de seu ser de homem social, em quem o tíbio reflexo do homem natu­ral apenas relampejava por acaso.

Dúvida, incerteza, vaidade, mentira, deslocavam e anulavam a bela organização daquela alma.

Assim chegou ao pé de Joaninha que o esperava de braços aber­tos, que o apertou neles, que o beijou sem nenhum falso recato de maliciosa modéstia, e com o riso da alegria no coração e na boca lhe disse...

— Ora pois, meu Carlos, sentemo-nos aqui bem juntos ao pé um do outro e conversemos, que temos muito que falar. Dá cá a tua mão. Aqui na minha... Está fria a tua mão hoje! E ontem tão quente estava!... Oh! agora vai aquecendo... tanto, tanto... é demais! Terás tu febre?

— Não tenho.

— Não tens, não: a cara é de saúde. E comotu estás forte, gran­de, um homem como eu sempre imaginei que um homem devia ser, como sempre te via nos meus sonhos!... Que é estranho isto, Carlos: quando sonhava contigo, não te via como tu daqui foste, magro, triste e doente: via-te como vens agora, forte, são, alegre... Mas tu não estás alegre hoje, como ontem; não estás... Que tens tu?

— Nada, querida Joaninha, não tenho nada. Pensava...

— Em que pensas tu? diz-me.

— Pensava na diferença dos nossos sonhos: que eu também so­nhava contigo.

— Sonhavas, Carlos! E como sonhavas tu? Como me vias nosteus sonhos?

— Tudo pelo contrário do que tu. Via-te aquela Joaninha pequena, desinquieta, travessa, correndo por essas terras, saltando essas valas, trepando a essas árvores... aquela Joaninha com quem eu andava ao colo, que trazia às cavaleiras, que me fazia ser tão doido e tão criança como ela, apesar de eu ter quinze anos mais. Via-te alegre, cantando...

— Sonhos de homem! Creiam neles! Eu que nunca mais ri nem brinquei desde o dia que tu partiste... E ó que dia, Carlos!... E os que vieram depois! Não houve nunca mais um só dia de alegria nesta casa. Oh! deixa-me te dizer: Frei Dinis... Sabes que não gosto dele?

— Não gostas?

— Nada: tenho-lhe aversão. E Deus me perdoe! parece-me que é injusta a minha antipatia.

— Porquê?

— Porque ele é teu amigo deveras. Um pai, Carlos, um pai não tem maior ternura e desvelos por seu filho do que ele tem por ti.

— Deus lhe perdoe!

— Deus lhe perdoe a quem... e que lhe há de perdoar? O amor que te tem?

— Não, mas...

— Bem sei o que queres dizer: e tens razão!

— Tenho razão!

— Tens: o que ele bem precisa que Deus lhe perdoe é um grande pecado.

— Que dizes tu, Joana! E como sabes?

— Sei, sei tudo.

— Tu!

— Eu. Sei que foi ele quem fez cegar minha avó... a nossa boa, a nossa santa avó, Carlos!... quem a cegou a força de lágrimas que lhe fez chorar àqueles pobres olhos que, de puro cansados, se apagaram para sempre... Minha rica avó! — E por quê, meu Deus, por quê!

— Por quê?

— Por amor de ti, por escrúpulos que lhe meteu na cabeça de tu seres mau cristão, inimigo de Deus, que te não podias salvar... tu, meu Carlos! Vê que cegueira a do triste frade.

— Bem triste!

— Mas olha que o diz de boa fé e pelo muito amor que te tem... que é um amor que eu não entendo: e o mesmo é com minha avó, que treme diante dele. E mais ele estima-a, estou certa que dava a vida por ela... e por nós todos... por mim não tanto, mas por ti e por ela dava decerto. Mas o seu amor é dos que ralam, que apoquentam... quase que estou em dizer que matam.

— Matam, matam!

— Nossa avó é ele que a mata decerto. Sempre a meter-lhe me­dos, sempre escrúpulos! O seu Deus dele é um Deus de terrores, de vinganças, de castigos, e sem nenhuma misericórdia. Oh! que homem! Para ele tudo é pecado, maldade... Não o posso ver.

Carlos respirava como desoprimido de um grande peso, ouvindo as explicações da prima que bem claro lhe mostravam a sua perfeita igno­rância dos fatais segredos da família.

— E contigo — disse ele já noutra voz mais desafogada contigo, Joaninha, com se avém ele, como te trata?

— Comigo não se mete, e rara vez me fala. Mas oh, se ele sou­besse que eu estava aqui contigo, santo Deus! o que ouviria a pobre da minha avó! Inda bem que hoje não é sexta-feira, senão não vinha eu cá,

— Por quê? Ainda vem todas as sextas-feiras?

— Sempre o mesmo. Amanhã cá o temos por pecado, que é sexta-feira.

— Não te vejo então amanhã aqui?

— Não decerto, aqui. Mas vamos, que a isso é que eu venho cá hoje, para te falar nisso... e para te ver, para falar contigo, para estar com o meu Carlos... e ao mesmo tempo também para ajustarmos como isto há de ser. Quando hás de ir tu ver a avó?... a nossa mãe; que ela é nossa mãe, Carlos, não conhecemos nunca outra, nem eu nem tu. Quando lhe hei de eu dizer que estás aqui? A pobre velhinha está tão doente! Há quinze dias que se não levanta da cama.

— Coitada da minha pobre mãe!... Oh! se não fosse!... Deixa es­tar, Joaninha; um dia será. Por agora não pode ser: bem vês. Como hei de eu atravessar as sentinelas dos realistas, ir a um posto inimigo? A minha vida... isso pouco importa, mas a minha honra ficava em perigo: por todos os modos a perdia, e talvez...

— Não senhor, Sr. Carlos, essa desculpa não basta. Vai num ano que aqui temos a guerra à porta de casa, e já sabemos como isso é, como as coisas se fazem. O comandante do nosso posto é um homem de bem, um cavalheiro perfeito. Em lhe eu dizendo quem tu és e a que cá vens... ele sabe o estado de minha avó, e tem-lhe muita amizade, dá-nos decerto licença para tu vires em toda a segurança. Pensas que ele não sabe que estou contigo aqui? Pois disse-lho eu; só lhe não expliquei quem tu eras; disse-lhe que eras um parente nosso que nos trazia noticias de outros, e que precisava falar-te, Não pôs dificuldade alguma: é uma pessoa excelente, bom, bom deveras.

— É moço o teu comandante?

— Moço, ele? coitado! Tem bons cinqüenta anos, e creio que ou­tros tantos filhos. Mas por que perguntas tu isso? E arqueaste as sobran­celhas com aquele teu ar de antes quando te zangavas! Por que foi isso, Carlos?

— Nada, criança, foi uma pergunta a toa.

— Pois será; mas não me franzas nunca mais a testa assim, que te pareces todo... é que nunca te vi tal parecença...

— Com quem?

— Com Frei Dinis.

— Eu com ele!

— Tal e qual quando fazes essa cara. Olha: ai estás tu na mesma. Vamos! ria-se e esteja contente se se quer parecer comigo, que todos dizem que nos parecemos tanto.

— Querida inocente!

E beijou-lhe a mão que tinha apertada na sua, beijou-lha uma e muitas vezes com um sentimento de ternura misturada de não sei que vaga compaixão, vindo de lá de dentro da alma com não sei que dor, meia dor meia prazer, que entre ambos se comunicou e a ambos ume­deceu os olhos.

XXV
O excesso de felicidade que aterra e confunde também.— Pasmosa contradição da nossa natureza.—- De como os olhos verdes de Joaninha se enturvaram e perderam todo o brilho. — Que o coração da mulher que ama, sempre adivinha certo.

Carlos tinha a mão de Joaninha apertada na sua: e os olhos úmi­dos de lágrimas cravados nos olhos dela, de cujo verde transparente e diáfano saíam raios de inefável ternura.

Dizer tudo o que ele sentia é impossível tão encontrados lhe anda­vam os pensamentos, em tão confuso tumulto se lhe alvorotavam todos os sentidos.

Por muito tempo não proferiram palavra, nem um nem outro; mas falaram assim longos discursos.

Enfim, Joaninha voltou á sua primeira insistência e disse para o

primo:

— Olha, Carlos, amanha é sexta-feira. Játe disse, vem Frei Dinis:

quando haja a menor dificuldade do comandante, a ele não lhe recusa nada...

— Por quanto há no céu, Joaninha, pela tua vida, pela de nossa avó, nem uma palavra ao frade da minha estada aqui! A ele, oh! a ele jurei eu não tornar a ver. E se minha avó...

— Basta: não lhe direi nada. Mas à nossa avó quando lho hei de dizer, e quando hás de tu ir vê-la?

— Por ora não: preciso licença de Lisboa, ou do quartel-general quando menos, para fazer uma coisa que todas as leis da guerra proí­bem, que nas atuais circunstâncias e em semelhante guerra ainda é mais defesa. E sem isso — tu bem sabes que as minhas resoluções não se mudam — sem isso não o faço. Em todo o caso, que Frei Dinis nem sonhe!...

— E quanto tempo, quantos dias se hão de passar?

— Eu sei? oito, quinze dias talvez, talvez mais.

— E a minha pobre avó, coitadinha! a morrer de saudades...

— Consola-a tu, Joaninha: diz-lhe que tiveste novas minhas, que estou bom, que me não falta nada, que tenho esperanças de vos ver muito cedo.

— E eu... eu posso, eu hei de ver-te todos os dias: não, Carlos?

— Amanhã é sexta-feira...

— Amanhã é o dia negro... nem eu queria: amanhã não pode ser, bem sei. Mas, tirado amanhã, meu Carlos, oh! todos os dias!

— Sim, querido anjo, sim.

— Prometes?

— Juro-to.

— Suceda o que suceder?

— Suceda o que... Só há uma cousa que... Mas essa não... não é possível.

— O que é, Carlos? Que pode haver, que pode suceder que te impeça de...?

Carlos estremeceu... hesitou, corou, fez-se pálido... quis dizer-lhe a verdade e não ousou...

Por quê... E que verdade era essa? Não a direi eu, já que ele a não disse: fiel e discreto historiador, imitarei a discrição do meu herói.

Pois era discrição a dele?

Não... em verdade, era outra coisa.

Era um pensamento reservado?

Não.

Era tenção má, engano premeditado, era?...

Não, também não,

O que era pois?

Era a dúvida, era a fraqueza, era a vaidade, a mentira congenial e obrigada, a necessária falsidade do homem social.

Carlos mentiu e disse:

- Só se mo proibirem expressamente... os meus chefes.

Mas não era isso o que ele receava; não era esse aquele motivo único e superior que ele temia pudesse vir um dia de repente cortar as doces relações de conveniência a que tão prestes se habituara, que já lhe pareciam parte necessária, indispensável na sua vida. Não era, não; e Carlos tinha mentido...

Joaninha olhou para ele fixa... Carlos corou de novo. Ela fez-se pálida... daí corou também.

— Carlos, tu não és capaz de mentir...?

— Joaninha!

— Tu és o meu Carlos... tu queres-me como me querias dantes...?

— Sou... oh! sou, E amo-te...

— Como dantes? Mais.

— Pois olha, Carlos: eu nunca amei, nunca hei de amar a nenhum homem senão a ti.

— Joana!

— Carlos!

Iam a cair nos braços um do outro... A singela confissão da inocên­cia ia ser aceita por quem e como, santo Deus! Aquela palavra de oiro, aquela doce palavra que tanto custa a pronunciar à mulher menos artei­ra; que adivinhada, sabida, ouvida há muito pelo coração, dita mil vezes com os olhos, nenhum homem descansa nem se tem por feliz, por certo de sua felicidade, enquanto a não ouve proferir pelos lábios - essa palavra celeste que explica o passado, que responde do futuro, que é a última e irrevogável sentença de um longo pleito de ansiedades, de in­certezas e de sustos - essa final e fatal palavra amo-te, Joaninha a pronunciara tão naturalmente, tão sincera, tão sem dificuldades nem he­sitações, como se aquele fosse — e era decerto — como se aquele tivesse sido sempre o pensamento único, a idéia constante e habitual de sua vida.

O excesso da felicidade aterra e confunde também. Um momento antes, Carlos dera a sua vida por ouvir aquela palavra... um momento depois — ó pasmosa contradição de nossa dúplice natureza! um mo­mento depois dera a vida pela não ter ouvido. No primeiro instante ia lançar-se nos braços da inocente que lhos abria num santo êxtase do mais apaixonado amor; no segundo, tremeu e teve horror da sua felici­dade.

— Joana — exclamou ele — Joana querida, sabes tu se eu mere­ço... sabes tu se deves?...

— Sei. Desde que me entendo, não pensei noutra coisa; desde que daqui foste, comecei a entender o que pensava... disse-o à minha avó, e ela...

— E ela?..

— Ela abençoou-me, chamou-me a sua querida filha, abraçou-me. beijou-me, e disse-me que aquela era a primeira hora de felicidade e de alegria que há muitos anos tinha tido.

Carlos não respondeu nada e olhou para Joaninha com uma indi­zível expressão de afeto e de tristeza. Os raios de alegria que resplande­ciam naquele semblante — agora belo de toda a beleza com que um verdadeiro amor ilumina as mais desgraciosas feições — os raios dessa alegria começaram a amortecer, a apagar-se. A lúcida transparência da­queles olhos verdes turvou-se: nem a clara luz da água-marinha, nem o brilho fundo da esmeralda resplandecia já neles; tinham o lustro baço e morto, o polido mate e silicioso de uma dessas pedras sem água nem brilho que a arte antiga engastava nos colares de suas estátuas.

— Adeus, Joana! — disse Carlos perturbado e confuso.

— Adeus, Carlos! — respondeu ela maquinalmente.

— Até depois de amanhã, Joana.

— Pois sim.

— Depois de amanhã te direi...

— Não digas.

— Por quê?

— Porque é escusado: já sei tudo.

— Sabes!

— Sei.

— O quê?

— O que tu não tens ânimo para me dizer, Carlos: mas que o meu coração adivinhou. Tu não me amas, Carlos.

— Não te amo! eu!... Santo Deus, eu não a amo....

— Não. Tu amas outra mulher.

— Eu! Joana, oh! se tu soubesses...

— Sei tudo.

— Não sabes.

— Sei; amas outra mulher, outra mulher que te ama, que tu não podes, que tu não deves abandonar, e que eu...

— Tu?

— Eu sei que é bela, prendada, cheia de graças e de encantos, porque... porque tu, meu Carlos, porque o teu amor não era para se dar por menos.

— Joana, Joaninha!

— Não digas nada, não me digas nada hoje... hoje sobretudo, não me digas nada. Amanhã...

— Amanhã é sexta-feira.

— Inda bem! terei mais tempo para refletir, para considerar antes de tornar a ver-te. Adeus, Carlos!

— Uma palavra só, Joana. Cuidas que sou capaz de te enganar?

— Não; estou certa que não.

— Até amanhã... até depois de amanhã.

— Adeus!

Abraçaram-se, e desta vez froixamente; beijaram-se de um ósculo tímido e recatado... os beiços de ambos estavam frios, as mãos trêmu­las; e o coração comprimido batia, batia-lhes tão forte que se ouvia.

Retirou-se cada um por seu lado. A noite estava pura e serena como na véspera, as estrelas luziam no céu azul com o mesmo brilho; o silêncio, a majestade, a beleza toda da natureza era a mesma... só eles eram outros... outros, tão outros e diferentes do que foram!

Tinham-se dado cuidadosamente as providências; ambos chegaram, sem nenhum acidente, ao seu destino.

XXVI
Modo de ler os autores antigos, e os modernos também. — Horácio da Sacravia. — Duarte Nunes iconoclasta da nosso história. — A polícia e os barcos de vapor. — Os vândalos do feliz sistema que nos rege.— Shakespeare lido em Inglaterra a um bom fogo, com um copo de old-sack sobre a banca. - Sir John Falstaff se foi maior homem que Sancho Pança?— Grande e imponente desco­berta arqueológica sobre S. Tiago, S. Jorge e Sir John Falstaff. – Prova-se a vinda deste último a Portugal. — O entusiasta britânico no túmulo de Heloisa e Abelardo no Pêre-Lachaise.— Bentham e Camões. — Chega o Autor à sua janela, e pasmosa miragem poética produzida por umas oitavas dos Lusíadas. — De como enfim prosseguem estas viagens para Santarém, e que feito será de Joaninha.

Seeu for algum dia a Roma, hei de entrar na cidade eterna com o meu Tito Lívio e o meu Tácito nas algibeiras do meu paletó de viagem. Ali, sentado naquelas rumas imortais, sei que hei de entender melhor a sua história, que o texto dos grandes escritores se me há de ilustrar com os monumentos de arte que os viram escrever, e que uns recordam, outros presenciaram os feitos memoráveis, o progresso e a decadência daquela civilização pasmosa.

E Juvenal e Horácio? o meu Horácio, o meu velho e fiel amigo Horácio!... Deve Ser um prazer régio ir lendo pela Sacravia fora aquela deliciosa sátira, creio que a nona do liv. I,

Ibam forte sacra via, sicut meus est mos

Nescio quid meditans nugarum...

Deve ser maior prazer ainda, muito maior do que beijar o péao Papa. Parece-me a mim; mas como eu nunca fui a Roma...

E não é preciso. Pegue qualquer na bela Crônica del rei D. Fer­nando, a que Duarte Nunes menos estragou...

O Duarte Nunes foi um reformador iconoclasta das nossas crônicas antigas, truncou tocas as imagens, raspou toda a poesia daquelas vene­randas e deliciosas Sagas portuguesas... Em ponto histórico pouco mais eram do que Sagas, verdade seja, mas, como tais, lindas. E o Duarte Nunes, que era um pobre gramaticão sem gosto nem graça, foi-se às filigranas e arrendados de finíssimo lavor gótico daqueles monumentos, quebrou-lhos; ficaram só os traços históricos que eram muito pouca e muito incerta coisa: e cuidou que tinha arranjado uma história, tendo apenas destruído um poema. Ficamos sem Niebelungen14, podendo-o ter, e não obtivemos história porque se não podia obter assim.

Pois digo: pegue qualquer na bela Crônica del rei D. Fernando, obedeça á lei concorrendo com o seu cruzado-novo para o aumento e glória da benemérita companhia que tem o exclusivo desses caranguejos de vapor que andam e desandam no rio, entre num dos referidos ca­ranguejos, em que, além da porcaria e mau cheiro, não há perigo ne­nhum senão o de rebentar toda aquela câmara ótica que anda por ara­mes, e que em qualquer pais civilizado, onde a polícia fizesse alguma coisa mais do que imaginar conspirações, há muito estaria condenada a ir ali caranguejar para as Lamas15 á sua vontade. Mas, enfim, cá não há doutros nem haverá tão cedo, graças ao muito que agora, dizem, que se cuida dos interesses materiais do pais: e portanto tome o seu lugar, passe o mesmo que eu passei; chegue-me a Santarém, descanse e ponha-se-me a ler a Crônica: verá se não é outra coisa, verá se diante daquelas preciosas relíquias, ainda mutiladas, deformadas como elas es­tão por tantos e tão sucessivos bárbaros, estragadas enfim pelos piores e mais vândalos de todos os vândalos, as autoridades administrativas e municipais do feliz sistema quê nos rege, ainda assim mesmo não vê erguer-se diante de seus olhos os homens, as cenas dos tempos que foram; se não ouve falar as pedras, bradar as inscrições, levantar-se as estátuas dos túmulos; e reviver-lhe a pintura toda, reverdecer-lhe toda a poesia daquelas idades maravilhosas!

Tenho-o experimentado muitas vezes: é infalível. Nunca tinha entendido Shakespeare enquanto o não li em Warwick ao pé do Avon, debaixo de um carvalho secular, à luz daquele sol baço e branco do nublado céu de Albion... ou à noite com os pés no fender16 ,a chaleira a ferver no fogão, e sobre a banca o cristal antigo de um bom copo lapidado a luzir-me alambreado com os doces e perfumados resplendores do old-sack17; enquanto o fogão e os ponderosos castiçais de co­bre brunido projetam no antigo teto almofadado, nos pardos compartimentos de carvalho que forram o aposento, aquelas fortes sombras vaci­lantes de que as velhas fazem visões e almas do outro mundo, de que os poetas - poetas como Shakespeare - fazem sombras de Banco, bruxas de Macbeth, e até a rotunda pança e o arrastante espadagão do meu particular amigo Sir John Falstaft o inventor das legitimas conse­qüências, o fundador da grande escola dos restauradores caturras, dos poltrões pugnazes que salvam a pátria de parola e que ninguém os atura em tendo as costas quentes.

Oh Falstaff, Falstaff! eu não sei se tu és maior homem que Sancho Pança. Creio que não. Mas maior pança tens, mais capacidade na pança tens. Quando nossos avós renegaram de S. Tiago por castelhano18 perro, e invocaram a S. Jorge, tu vieste, ó Falstaff, em sua comi­tiva de Inglaterra, e aqui tomaste assento, aqui ficaste, e foste o pa­triarca dessa imensa progênie de Falstaffs que por aí anda.

Este importante ponto da nossa história, da demissão de S. Tiago e da vinda de S. Jorge de Inglaterra com Sir John Falstaff por seu homem de ferro — esta grande descoberta arqueológica que tanta coisa mo­derna explica, como a fiz eu? Indo aos sítios mesmos, estudando ali os antigos exemplares: que é a minha doutrina,

Em tudo, para tudo é assim, Chegou um dia um inglês a Paris: inglês legitimo e cru, virgem de toda a corrupção continental; calça de ganga, sapato grosso, cabelo de cenoira, chapéu filado na cova-do-­ladrão. Era entusiasta de Heloísa e Abelardo, foi-se ao Pére-Lachaise, chegou ao túmulo dos dois amantes, tirou um livrinho da algibeira, pôs-se a ler aquelas cartas do Paracleto que têm endoidecido muito menos excêntricas cabeças que a do meu inglês puro-sangue. Não é nada; excitou-se a tal ponto que entrou a correr como um perdido, bradando por um cônego da Sé que lhe acudisse, que se queria identi­ficar com o seu modelo, purificar a sua paixão, ser enfim um completo — ou um incompleto Abelardo.

Eu não sou suscetível de tamanho entusiasmo, sobretudo desde que dei a minha demissão de poeta e cai na prosa. Mas aqui têm o que me sucedeu o outro dia. Tinha estado às voltas com o meu Bentham, que é um grande homem por fim de contas o tal quacre, e são grandes livros os que ele escreveu: cansou-me a cabeça, peguei no Camões e fui para a janela. As minhas janelas agora são as primeiras janelas de Lisboa, dão em cheio por todo esse Tejo. Era uma destas brilhantes manhãs de inverno, como as não há senão em Lisboa. Abri os Lusíadas à ventura, deparei com o canto IV e pus-me a ler aquelas belíssimas estâncias

E já no porto da ínclita Ulisséia...

Pouco a pouco amotinou-se-me o sangue, senti baterem-me as ar­térias da fronte... as letras fugiam-me do livro, levantei os olhos, dei com eles na pobre nau Vasco da Gama que aí esta em monumento-caricatura da nossa glória naval... E eu não vi nada disso, vi o Tejo, vi a bandeira portuguesa flutuando com a brisa da manhã, a torre de Belém ao longe... e sonhei, sonhei que era português, que Portugal era outra vez Portugal.

Tal força deu o prestigio da cena as imagens que aqueles versos evocavam!

Senão quando, a nau que salva a uns escaleres que chegam... Era o ministro da marinha que ia a bordo.

Fechei o livro, acendi o meu charuto, e fui tratar das minhas camélias.

Andei três dias com ódio à letra redonda.

Mas de tudo isto o que se tira, a que vem tudo isto para as minhas viagens ou para o episódio dovale de Santarém em que há tantos capítulos nos temos demorado?

Vem e vem muito: vem para mostrar que a história, lida ou con­tada nos próprios sítios em que se passou, tem outra graça e outra força; vem para te eu dar o motivo porque nestas minhas viagens, leitor amigo, me fiquei parado naquele vale a ouvir do meu compa­nheiro de jornada e a escrever, para teu aproveitamento, a interessante história da menina dos rouxinóis, da menina dos olhos verdes, da nossa boa Joaninha.

Sim, aqui tenho estado estendido no chão, asmulinhas pastando na relva, os arneiros fumando tranqüilamente sentados, e as últimas ho­ras de uma longa e calmosa tarde de julho a cair e a refrescar com a aragem precursora da noite.

Mas basta de vale, que é tarde. Olá! venham as mulinhas e mon­temos. Picar para Santarém, que no ínclito alcáçar del rei D. Afonso Henriques nos espera um bom jantar de amigo — e não é só a vaca e riso de Fr. Bartolomeu dos Mártires'9, mas um verdadeiro jantar de amigo, muito menos austero e muito mais risonho.

—Por quê? já se acabou a história de Carlos e de Joaninha? — diz talvez a amável leitora.

— Não, minha senhora — responde o autor mui lisonjeado da pergunta. — Não, minha senhora, a história não acabou, quase se pode dizer que ainda ela agora começa; mas houve mutação de cena. Vamos a Santarém, quelá se passa o segundo ato.

XXVII
Chegada a Santarém. — Olivais de Santarém. — Fora-de-Vila. — Simetria que não é para os olhos. — Modo de medir os versos da Bíblia. — Arquitetura pe­dante do século XVII. — Entrada no Alcáçova.

Eram as últimas horas do dia quando chegamos ao principio da calçada que leva ao alto de Santarém. A pouca freqüência do povo, as hortas e pomares mal cultivados, as casas de campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças de uma grande povoação descaída e desampa­rada. O mais belo, contudo, de seus ornatos e glórias suburbanas ainda o possui a nobre vila, não lhodestruíram de todo; são os seus olivais. Os olivais de Santarém, cuja riqueza e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais gerais e mais queridas!... os olivais de Santarém lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os ver; saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga existência. Naqueles troncos velhos e coroados de verdura, figurou-se-me ver, como nas selvas encantadas do Tasso, as venerandas imagens de nossos passados; e no murmúrio das folhas, que o vento agitava a espaços o triste suspirar de seus lamentos pela vergonhosa degeneração dos netos...

Estragado como os outros, profanado como todos, o olival de Santarém é ainda um monumento.

Os povos do meio-dia, infelizmente, não professam com o mesmo respeito e austeridade aquela religião dos bosques, tão sagrada para as nações do norte. Os olivais de Santarém são exceção: há muito pouco entre nós o culto das arvores.

Subimos, a bom trotar das mulinhas, a empinada ladeira — eu alvoraçado e impaciente por me achar face a face com aquela profusão de monumentos e de ruínas que a imaginação me tinha figurado e que ora temia, ora desejava comparar com a realidade.

Chegamos enfim ao alto; a majestosa entrada da grande vila está diante de mim. Não me enganou a imaginação... grandiosa e magnífica cena!

Fora-de-Vila é um vasto largo, irregular e caprichoso como um po­ema romântico; ao primeiro aspecto, àquela hora tardia e de pouca luz, é de um efeito admirável e sublime. Palácios, conventos, igrejas ocupam gravemente e tristemente os seus antigos lugares, enfileirados sem or­dem aos lados daquela imensa praça, em que a vista dos olhos não acha simetria alguma; mas sente-se na alma. E como o ritmo e medição dos grandes versos bíblicos que se não cadenciam por pés nem por silabas, mas caem certos no espírito e na audição interior com uma regularidade admirável.

E tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Cuida-se entrar na grande metrópole de um povo extinto, de uma nação que foi poderosa e celebrada, mas que desapareceu da face da terra e só deixou o mo­numento de suas construções gigantescas.

À esquerda o imenso convento do Sitio ou de Jesus, logo o das Donas, depois o de S. Domingos, célebre pelo jazigo do nosso Fausto português - seja dito sem irreverência à memória de S. Frei Gil que, é verdade, veio a ser grande santo, mas que primeiro foi grande bruxo. Defronte o antiqüíssimo mosteiro das claras, e ao pé as baixas arcadas góticas de S. Francisco... de cujo último guardião, o austero Frei Dinis, tanta coisa te contei, amigo leitor, e tantas mais tenho ainda para te contar! À direita o grandioso edifício filipino, perfeito exemplar da ma­ciça e pedante arquitetura reacionária do século dezessete, o Colégio, tipo largo e belo no seu gênero, e quanto o seu gênero pode ser, das construções jesuíticas...

Não há alma não há gênio, não há espirito naquelas massas pesadas, sem elegância nem simplicidade; mas há uma certa grandeza que impõe, uma solidez travada, uma simetria de cálculo, umas proporções frias,. mas bem assentadas e esquadriadas com método que revelam o pensamento do século e do instituto que tanto o caracterizou.

Não são as fortes crenças da Meia Idade que se elevam no arco agudo da ogiva; não é a relaxação florida do século quinze e dezesseis que já vacila entre o bizantino e o clássico, entre o místico ideal do cristianismo que arrefece e os símbolos materiais do paganismo que acorda; não, aqui a Renascença triunfou, e depois de triunfar, degene­rou. É a Inquisição, são os jesuítas, são os Filipes, é a reação católica edificando templos para que se creia e se ore, não porque se crê e se ora.

Até aqui o mosteiro e a catedral, a ermida e o convento eram a expressão da idéia popular, agora são a fórmula do pensamento governativo.

Ali estão — olhai para eles — defronte uns dos outros, os monu­mentos das duas religiões, o qual mais expressivo e loquaz, dizendo mais claro que os livros, que os escritos, que as tradições, o pensamento das idades que os ergueram, e que ali os deixaram gravados sem saber o que faziam.

Mais em baixo e no fundo desse declive, aquela massa negra é o resto ainda soberbo do já imenso palácio dos condes de Unhão.

Rodeamos o largo e fomos entrar em Marvila pelo lado do norte. Estamos dentro dos muros da antiga Santarém. Tãomagnífica é a en­trada, tão mesquinho é agora tudo cá dentro, a maior parte destas casas velhas sem serem antigas, destas ruas mourescas sem nada de árabe. sem o menor vestígio de sua origem mais que a estreiteza e pouco asseio.

As igrejas quase todas, porém, as muralhas e os bastões, algumas das portas, e poucas habitações particulares, conservam bastante da fi­sionomia antiga e fazem esquecer a vulgaridade do resto.

Seguimos a triste e pobre rua Direita, centro do débil comércio que ainda aqui há: poucas e mal providas lojas, quase nenhum movimento. Cá está a curiosa torre das Cabaças, a velha igreja de S. João de Alpo­rão. Amanhã iremos ver tudo isso de nosso vagar. Agora vamos à Alcá­çova!

Entramos a ponta da antiga cidadela. — Que espantosa e desgra­ciosa confusão de entulhos, de pedras, de montes de terra e caliça! Não há ruas, não há caminhos, é um labirinto de ruínas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo é ao pé mesmo da famosa e histórica igreja de Santa Maria de Alcáçova. Há de custar a achar em tanta confusão.

XXVIII
Depois de muito procurar acha enfim o Autor a igreja de Santa Maria de Alcáço­va.— Estilo da arquitetura nacional perdida. — O terremoto de 1755, o Marquês de Pombal e o chafariz do Passeia Público de Lisboa. — O chefe do partido progressista português no alcáçar de D. Afonso Henriques. — Deliciosa vista dos arredores de Santarém observada de uma janela da Alcáçova, de manhã. — É tomado o autor de idéias vagas, poéticas, fantásticas como um sonho. — Intro­dução do Fausto - Dificuldade de traduzir os versos germânicos nos nossos dialetos romanos.

Depois de muito procurar entre pardieiros e entulhos, achamo-la enfim a igreja de Santa Maria de Alcáçova. Achamos, não é exato: ao menos eu, por mim, nunca a achava, nem queria acreditar que fosse ela quando ma mostraram. A real colegiada de Afonso Henriques, a quase-catedral da primeira vila do reino, um dos principais, dos mais antigos, dos mais históricos templos de Portugal, isto?... esse igrejório insignificante de capuchos! mesquinha e ridícula massa de alvenaria, sem nenhuma arquitetura, sem nenhum gosto! risco, execução e traba­lho de um mestre pedreiro de aldeia e do seu aprendiz! É impossível.

Mas era, era essa. A antiga capela-real, a veneranda igreja da Alcá­çova foi passando por sucessivos reparos e transformações, até que chegou a esta miséria.

Perverteu-se por tal arte o gosto entre nós, desde o meio do século passado especialmente, os estragos do terremoto grande quebraram por tal modo o fio de todas as tradições da arquitetura nacional, que na Europa, no mundo todo talvez se não ache um pais onde, a par de tão belos monumentos antigos como os nossos, se. encontrem tão vilãs, tão ridículas e absurdas construções públicas como essas quase todas que há um século se fazem em Portugal.

Nos reparos e reconstruções dos templos antigos é que este pés­simo estilo, esta ausência de todo estilo, de toda a arte mais ofende e escandaliza.

Olhem aquela empena clássica posta de remate ao frontispício todo renascença da Conceição Velha em Lisboa. Vejam a emplastagem de gesso com que estão mascarados os elegantes feixes de colunas góticas da nossa Sé,

Não se pode cair mais baixo em arquitetura do que nós caímos quando, depois que o Marquês de Pombal nos traduziu, em vulgar e arrastada prosa, os rococós de Luís XV, que no original, pelo menos, eram floridos, recortados, caprichosos e galantes como um madrigal, esse estilo bastardo, híbrido, degenerando progressivamente e tomando presunções de clássico, chegou nos nossos dias até ao chafariz do Pas­seio Público!

Mas deixar tudo isso, e deixar a igreja da Alcáçova também; entre­mos nos palácios de D. Afonso Henriques.

Aqui, pegado com o pardieiro rebocado da capela hão de ser. Por onde se entra?

Por esta portinha estreita e baixa, rasgada, bem se vê que há pou­cos anos, no que parece muro de um quintal ou de um pátio.

É com efeito aqui; apeemo-nos.

Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, atual possuidor e habitante do régio alcáçar, o Sr. M. P.

Notável combinação do acaso! Que o ilustre e venerando chefe do partido progressista em Portugal, que o homem de mais sinceras con­vicções democráticas, e que mais sinceramente as combina com o res­peito e adesão às formas monárquicas, esse homem, vindo do Minho, do berço da dinastia e da nação, viesse fixar aqui a sua residência no alcáçar do nosso primeiro rei, conquistado pela sua espada num dos feitos mais insignes daquela era de prodígios!

Entramos na pequena horta em forma de claustro que une a antiga casa dos reis com a sua capela. Assim foi sem dúvida noutro tempo: a parede oriental da igreja é o muro do quintal de um lado, mas as co­municações foram vedadas provavelmente quando a coroa alienou o palácio e o separou assim perpetuamente do templo.

Plantada de laranjeiras antigas, os muros forrados de limoeiros e parreiras, aquela pequena cerca, apesar de muitos canteiros e alegretes de alvenaria com que está moirescamente entulhada, é amena e gra­ciosa à vista.

Apresentou-nos o nosso amigo a sua mulher, senhora de porte gentil e grave; beijamos seus lindos filhos, e fomos fazer as abluções indispensáveis depois de tal jornada para nos podermos sentar á mesa.

O palácio de Afonso Henriques está como a sua capela: nem o mais leve, nem o mais apagado vestígio da antiga origem. Sabe-se que é ali pela bem confrontada e inquestionável topografia dos lugares, por mais nada...

E que me importam a mim agora as antigüidades, as ruínas e as demolições. quando eu sinto demolir-me cá por dentro por uma fome exasperada e destruidora, uma fome vandálica, insaciável!

Vamos a jantar.

Comemos, conversamos, tomamos chá, tornamos a conversar e tornamos a comer. Vieram visitas, falou-se política, falou-se literatura, falou-se de Santarém sobretudo, das suas ruínas, da sua grandeza anti­ga. da sua desgraça presente. Enfim, fomo-nos deitar,

Nunca dormi tão regalado sono em minha vida, Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo. o mais grandioso, e ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos.

No fundo de um largo vale aprazível e sereno está o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam verdes e frescos ainda os salguei­ros que as ornam e defendem. De além do rio, com os pés no pingue nateiro daquelas terras aluviais, os ricos olivedos de Alpiarça e Almeirim; depois a vila de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. Daquém a imensa planície dita do Rossio, semeada de casas, de aldeias, de hor­tas, de grupos de árvores silvestres, de pomares. Mais para a raiz do monte, em cujo cimo estou, o pitoresco bairro da Ribeira com as suas casas e as suas igrejas, tão graciosas vistas daqui, a sua cruz de Santa Iria e as memórias romanescas do seu Alfageme.

Com os olhos vagando por este quadro imenso e formosíssimo, a imaginação tomava-me asas e fugia pelo vago infinito das regiões ideais Recordações de todos os tempos, pensamentos de todo o gênero afluíam ao espírito, e me tinham como num sonho em que as imagens mais discordantes e disparatadas se sucedem umas ás outras.

Mas eram todas melancólicas, todas de saudade, nenhuma de esperança!...

Lembraram-me aqueles versos de Goethe, aqueles sublimes e inimitáveis versos da introdução do Fausto:

Ressurgis outra vez, vagas figuras,

Vacilantes imagens que à turbada

Vista acudíeis dantes, E hei de agora

Reter-vos firme? Sinto eu ainda

O coração propenso a ilusões dessas?

E apertais tanto!... Pois embora! seja;

Dominai, já que em névoa e vapor leve

Em torno a mim surgis. Sinto o meu seio

Juvenilmente tépido agitar-se

Co'a maga exalação que vos circunda.

Trazeis-me a imagem de ditosos dias,

E dai se ergue muita sombra amado;

Corno um velha cantar meio esquecido,

Vêm os primeiros símplices amores

E a amizade com eles. Reverdece

A mágoa, lamentando o errado curso

Dos labirintos da perdida vida;

E me está nomeando os que traídos

Em horas belas por falaz ventura

Antes de mim na estrada se sumiram.

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