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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Joaninha adormecida. — O demi-jour da coquette. — Poesia de Flos Sanctorum —De como os rouxinóis acompanhavam sempre a menina do seu nome; e do bem que um deles cantava no bosque. — Retrato esquiçado à pressa para satisfazer às amáveis leitoras. — Pondera-se o triste e péssimo gosto dos nossos governantes em tirarem as honras militares ao mais elegante e mais nacional uniforme do exército português. — Em que se parece o autor da presente obra com um pintor da Idade Média. — De como os abraços, por mais apertados que sejam, e os beijos, por mais intermináveis que pareçam, sempre têm de acabar por fim.

Sobre uma espécie de banco rústico de verdura, tapeçado de gramas e de macela brava, Joaninha, meio recostada, meio deitada, dormia profundamente.

A luz baça do crepúsculo, coada ainda pelos ramos das árvores, iluminava tibiamente as expressivas feições da donzela; e as formas graciosas do seu corpo se desenhavam mole e voluptuosamente no fundo vaporoso e vago das exalações da terra, com uma incerteza e indecisão de contornos que redobrava o encanto do quadro, e permite à imaginação exaltada percorrer toda a escala de harmonia das graças femininas.

Era um ideal de demi-jour da coquette parisiense: sem arte nem estudo, lho preparara a natureza em seu boudoir de folhagem perfumado da brisa recendente dos prados.

Com nessas poéticas e populares legendas de um dos mais poéticos livros que se tem escrito, o Flos Sanctorum, em que a ave querida e fadada acompanha sempre a amável santa de sua afeição — Joaninha não estava ali sem o seu mavioso companheiro. Do mais espesso da ramagem, que fazia sobrecéu àquele leito de verdura, saía uma torrente de melodias, que vagas e ondulantes como a selva com o vento; fortes, bravas, e admiráveis de irregularidade e invenção como as bárbaras endechas de um poeta selvagem das montanhas... Era um rouxinol, um dos queridos rouxinóis do vale que ali ficara de vela e companhia à sua protetora, à menina do seu nome.

Com o aproximar dos soldados, e o cochichar do curto diálogo que no fim do último capítulo se referiu, cessara por alguns momentos o delicioso canto da avezinha; mas quando o oficial, postadas as sentinelas a distância, voltou pé ante pé e entrou cautelosamente para debaixo das árvores, já o rouxinol tinha tornado ao seu canto, e não o suspendeu outra vez agora, antes redobrou de trilos e gorjeios, e do amais alto de sua voz agudíssima veio descaindo depois em uns suspiros tão magoados, tão sentidos, que não dissera senão que a preludiava a mais terna e maviosa cena de amor que este vale tivesse visto.

O oficial... — Mas certo que as amáveis leitoras querem saber com quem tratam, e exigem, pelo menos, uma esquiça rápida e a largos traços do novo ator que lhe vou apresentar em cena.

Têm razão as amáveis leitoras, é um dever de romancista a que se não pode faltar.

O oficial era moço, talvez não tinha trinta anos, posto que o trato das armas, o rigor das estações, e o selo visível dos cuidados que trazia estampado no rosto, acentuassem já mais fortemente, em feições de homem feito, as que ainda devia arredondar a juventude.

A sua estatura era mediana, o corpo delgado, mas o peito largo e forte como precisa um coração de homem para pulsar livre; seu porte gentil e decidido de homem de guerra desenhava-se perfeitamente sob o espesso e largo sobretudo militar — espécie de great-coat inglês, que a imitação das modas britânicas tinha tornado familiar dos nossos bivaques. Trazia-o desabotoado e descaído para trás, porque a noite não era fria; e via-se por baixo elegantemente cingida ao seu corpo a fardeta parda dos caçadores, realçada de seus característicos alamares pretos e avivada de encarnado...

Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a nossas recordações — que essas gentes, prostituidoras de quanto havia nobre, popular e respeitado nesta terra, proscreveram do exército... por muito português demais talvez! deram-lhe baixa para os beleguins da alfândega, reformaram-no em uniforme da bicha!

Não pude resistir a esta reflexão: as amáveis leitoras me perdoem por interromper com ela o meu retrato.

Mas quando pinto, quando vou riscando e colorindo as minhas figuras, sou como aqueles pintores da Idade Média que entrelaçavam nos seus painéis dísticos de sentenças, fitas lavradas de moralidade e conceitos... talvez porque não saibam dar aos gestos e atitudes expressão bastante para dizer por eles o que assim escreviam, e servia a pena de suplemento e ilustração ao pincel... Talvez e talvez pelo mesmo motivo caio eu no mesmo defeito.

Será; mas em mim é irremediável, não sei pintar de outro modo.

Voltemos ao nosso retrato.

Os olhos pardos e não muito grandes, mas de uma luz e viveza imensa, denunciavam o talento, a mobilidade do espírito — talvez a irreflexão... mas também a nobre singeleza de um caráter franco, leal e generoso, fácil na ira, fácil no perdão, incapaz de se ofender de leve, mas impossível de esquecer uma injúria verdadeira.

A boca, pequena e desdenhosa, não indicava contudo soberba, e muito menos vaidade, mas sorria na consciência de uma superioridade inquestionável e não disputada.

O rosto, mais pálido que trigueiro, parecia comprido pela barba preta e longa que trazia ao uso do tempo. Também o cabelo era preto; a testa alta e desafogada.

Quando calado e sério, aquela fisionomia podia-se dizer dura; a mais pequena animação, o mais leve sorriso a fazia alegre e prazenteira, porque a mobilidade e a gravidade eram os dois pólos desses caráter pouco vulgar e dificilmente bem entendido.

Daquele busto clássico e verdadeiramente moldado pelos tipos da arte antiga, podia o estatutário fazer um filósofo, um poeta, um homem de Estado, ou um homem do mundo, segundo as leves inflexões de expressão que lhe desse.

Neste momento agora, e ao entrar na pequena espessura daquelas árvores, animava-o uma viva e inquieta expressão de interesse — quebrado contudo, sustido e, por assim dizer, sofreado, de um temor oculto, de um pensamento reservado e doloroso que lhe ia e vinha ressumbrando na face, como a antiga e desbotada cor de um estofo que se tingiu e novo — que é outro agora, mas que não deixou e ser inteiramente o que era...

Alegra-se assim um triste dia de novembro com o raio do sol transiente e inesperado que lhe rompeu a cerração num canto do céu.

Tal era, e tal estava diante de Joaninha adormecida, o que não direi mancebo porque o não parecia — o homem singular a quem o nome, a história e as circunstâncias da donzela pareciam ter feito tamanha impressão.

— Joaninha! — murmurou ele apenas a viu à luz ainda bastante do crepúsculo, — Joaninha! — disse outra vez, contendo a violência da exclamação: — É ela sem dúvida. Mas que diferente!... Quem tal diria! Que graça! que gentileza! Será possível que a criança que há dois anos?...

Dizendo isto, por um movimento quase involuntário lhe tomou a mão adormecida e a levou aos lábios.

Joaninha estremeceu e acordou.

— Carlos, Carlos! — balbuciou ela, com os olhos ainda meio fechados. — Carlos, meu primo... meu irmão! Era falso, dize: era falso? Foi um sonho, não foi, meu Carlos?...

E progressivamente abria os olhos mais e mais até se lhe espantarem e os cravar nele arregalados de pasmo e de alegria.

— Foi, foi — continuou ela; — foi sonho, foi um sonho mau que tive. Tu não morreste... Fala à tua irmã, à tua Joana: dize-lhe que estás vivo, que não és a sombra dele... Não és, não, que eu sinto a tua mão quente na minha que queima, sinto-a estremecer como a minha... Carlos! meu Carlos! dize, fala-me: tu estás vivo e são? E és... és... o meu Carlos? Tu próprio, não é já o sonho, és tu?...

— Pois tu sonhavas? tu Joana, tu sonhavas comigo?

— Sonhava como sonho sempre que durmo... e o mais do tempo que estou acordada... sonhava com aquilo em que só penso... em ti.

— Joana... prima... minha irmã!

E caiu nos braços dela; e abraçaram-se num longo, longo abraço — com um longo, interminável beijo... longo, longo e interminável como um primeiro beijo de amantes...

O abraço desfez-se, e o beijo terminou enfim, porque os reflexos do céu na terra são limitados e imperfeitos como as incompletas existências que a habitam.

Senão... invejariam os anjos a vida na terra.

Joaninha, tornada a si daquele paroxismo, abria e fechava os olhos para se afirmar se estava bem acordada, tocava as mãos, o rosto, e o peito, os braços do primo, palpava-se depois a si mesma como quem duvidava de sua própria existência, e dizia em palavras cortadas e sem nexo:

— É Carlos... Carlos foi falso. É meu primo... Minha avó também sonhou o mesmo sonho, mas foi falso. Frei Dinis não é que o disse, nem ninguém: eu e a avó é que o sonhamos. Mas ele aqui está, vivo... vivo! é nosso, nosso todo outra vez... Mas como vieste tu aqui, Carlos? Como estava eu aqui contigo?... E sós, sozinhos aqui a esta hora! Não deve ser isto.. Valha-me Deus! E que dirão? E Jesus! Lá isso não me importa; deixá-los dizer; mas não deve ser. Vamos, Carlos, vamos ter com ela, vamos para a avó!.. Que nisto não há mal nenhum... Meu primo!... um primo com que eu fui criada!.. Mas quem não souber, pode dizer... Vamos, Carlos. — Oh! minha avó morre de alegria , coitada!... É verdade: vou adiante preveni-la, prepará-la... hei de lhe ir assim dizendo pouco a pouco... Segue-me tu, Carlos, e vamos. Mas, ó meu Deus! não é preciso; para quê? Ela é cega, coitadinha, não sabes?

— Cega, que dizes? Minha avó está cega?

— Pois não sabias? Ai! É verdade, não sabias. Tantas coisas que tu não sabes, meu Carlos! Mas eu te contarei tudo, tudo. Olha: cegou quando... Mas não falemos agora nestas tristezas que já lá se vão. Em ela te sentindo ao pé de si, é o mesmo que tornar-lhe a vista. Tem-mo ela dito muitas vezes, eu bem sei que é assim. Mas ouve: um dia havemos de falar —nós dois sós — à vontade: tenho tanto que te dizer... nem tu sabes... Agora vamos, Carlos.

E falando assim, tomou-o pela mão e saiu para o vale aberto, froixamente aclarado já de miríades de estrelas cintilantes no céu azul.

XXI
Quem vem lá? — Como entre dois litigantes nem sempre goza o terceiro. — Carlos e Joaninha numa espécie de situação ordeira, a mais perigosa e falsa das situações.

As estrelas luziam no céu azul e diáfano, a brisa temperada da primavera suspirava brandamente; na larga solidão e no vasto silêncio do vale distintamente se ouvia o doce murmúrio da voz de Joaninha, claramente si via o vulto da sua figura e da do companheiro que ela levava pela mão e que maquinalmente a seguia como sem vontade própria, obedecendo ao poder de um magnetismo superior e irresistível.

Passavam, sem ver e sem refletir onde estavam, por entre as vedetas de ambos os campos... e ao mesmo tempo de umas e outras lhe bradou a voz breve e estridente das sentinelas: — Quem vem lá?

Estremeceram involuntariamente ambos com o som repentino da guerra e de alarma que os chamava à esquecida realidade do sítio, da hora, das circunstâncias em que se achavam... Daquele sonho encantado que os transportara ao Éden querido de sua infância , acordaram sobressaltados... viram-se na terra erma e bruta, viram a espada flamejante da guerra civil que os perseguia, que os desunia, que os expulsava pára sempre do paraíso de delícias em que tinham nascido...

Oh! que imagem eram esses dois, no meio daquele vale nu e aberto, à luz das estrelas cintilantes, entre duas linhas de vultos negros, aqui e ali dispersos e luzindo acaso do transiente reflexo que fazia brilhar uma baioneta, um fuzil!... que imagem não eram dos verdadeiros e mais santos sentimentos da natureza expostos e sacrificados sempre no meio das lutas bárbaras e estúpidas, no conflito de falsos princípios em que se estorce continuamente o que os homens chamaram sociedade!

Joaninha abraçou-se com o primo; ele parou de repente e com a mão ao punho da espada.

— Quem vem lá? — tornaram a bradar as sentinelas.

— Ouves, Joana? — disse Carlos em voz baixa e sentida: — Ouves estes brados? É o grito da guerra que nos manda separar; é o clamor cioso e vigilante dos partidos que não tolera a nossa intimidade, que separa o irmão da irmã, o pai do filho!...

Quem vem lá? — bradaram ainda mais forte as sentinelas e ouviu-se aquele estridor baço e breve que de tão froixo é e tão forte impressão faz nos mais bravos ânimos... era o som dos gatilhos que se aramavam nas espingardas.

O momento era supremo, o perigo iminente e já inevitável... ali podiam ficar ambos, traspassados opostas dos dois campos contendores.

Como esses que, fiados em sua inocência e abnegação, cuidam poder passar por entre as discórdias civis sem tomar parte nelas, e que são, por isso mesmo, objeto de todas as desconfianças, alvo de todos os tiros — assim estavam ali os dois primos na mais arriscada e falsa posição que têm as revoluções.

Joaninha conheceu o perigo que os ameaçava; e com aquela rapidez de resolução que a mulher tem mais pronta e segura nas grandes ocasiões, disse para Carlos:

— Fala aos teus, faze-te conhecer e põe-te a salvo. Amanhã nos tornaremos a ver: eu te avisarei! Adeus!

— E tu, tu?... E as sentinelas dos realistas?...

— Não tenhas cuidado em mim. Desta banda todos me conhecem.

Deu alguns passos para o lado de sua casa e levantou a voz:

— Joaninha! Sou eu, camaradas, sou eu!

Imediatamente se ouviu o som retinido das coronhas no chão, e o riso contente dos soldados que reconheciam a benquista e bem-vinda voz de Joaninha... da “menina dos rouxinóis”.

— Vês, Carlos?... Adeus! até amanhã — disse ela baixo.

— Até amanhã, se...

— Se!... Pois tu?...

— Ouve: não digas a tua avó que me viste, que estou aqui: é forçoso, é indispensável, exijo-o de ti...

— E amanhã me dirás?...

— Sim.

— Prometo: não direi nada... Mas, oh! Carlos...

— Adeus!

Carlos deu dois passos para a banda das suas vedetas. Joana correu para o lado oposto. Mas ele parou e não tirou os olhos daquela forma gentil que deslizava como uma sombra pelo horizonte do vale, até que desapareceu e todo.

E ele imóvel ainda!

Faiscaram de repente como relâmpago um, dois, três... e a detonações que os seguiram, e o assovio das balas que vinham de após elas... Eram as sentinelas constitucionais que faziam fogo sobre o seu comandante que não conheciam, cujo silêncio e imobilidade o fazia suspeito.

Uma das balas ainda o feriu levemente no braço esquerdo.

— Bem, camaradas! — bradou Carlos caminhando rapidamente para eles, e erguendo a voz forte e cheia que tão conhecida era nas fileiras: — Bem! Fizeram a sua obrigação. Um de vocês que me aperte aqui o braço com este lenço.

— Carlos! — gritou ao longe uma voz fina, aguda, vibrante de terror pelo espaço; — Carlos! fala-me, responde: não te sucedeu nada?

— Nada, nada! Sossega.

E tornou a cair tudo no silêncio. Carlos retirou-se ao seu quartel numa choupana próxima. Os soldados olharam-se ente si e sorriram.

Um mais doutro disse para os outros:

— O nosso capitão não se descuida: ainda hoje chegou, e já nós lá vamos, hein?

— O nosso capitão é daqui, não sabes?

— Hum! tenho percebido. E ainda lhe dura? O homem é capaz!...

— Silêncio! Eu te direi logo a história toda: é uma prima.

— Ah! prima. Então não há nada que dizer.

— É a que eles chamam aqui...

— A menina dos rouxinóis? Essa é maluca.

— Gosta delas assim, que ele também o é.

— Pois a freira de S. Gonçalo, na Terceira?

— Maluca.

— E a Lady inglesa, que?...

— Maluquíssima essa! Não me há de admirar se a vir cair do ar um dia por aí como bomba. E não há de dar mau estalo!

— Pudera! E encontrando-se com a prima então!...

— Mas ela é prima ou é irmã?

— É uma tal parentela enrevezada a dessa gente da casa do vale!... dizem coisas por aí, que se eu as entendo!... E há um frade no caso, já se sabe...

— Oh!, ele há frade no caso?

— Há, e que frade! Um apostólico às direitas! Tão feio, tão magro! aparece por aí às vezes. Eu já o lobriguei um dia: e que famoso tiro que era! Quase que me arrependo de não ter...

— Isso! hoje íamos matando o nosso capitão por instantes. Ora agora se lhe matas o tio, ou pai, ou o que quer que é ...

— Um frade!

— Um frade não é gente?

— Não senhor.

— Está bom: basta de conversar por hoje. O que me parece é que nós temos cedo muita pancada rija.

— Venha ela, que isto já me aborrece.

Acenderam os cigarros e fumaram.

Com o mesmo sossego de espírito... santo Deus! acendem os homens a guerra civil, que altera e confunde por este modo todas as idéias, todos os sentimentos da natureza.

XXII
Bilhete de manhã da prima ao primo. Enganam a pobre da velha. — Noite maldormida. — Da conversa que teve Carlos com seus botões. — A Joaninha que ele deixara, e a Joaninha que achou. — Obrigações de amor, triste palavra. — A mulher que ele amava, e se ele amava ainda. — Quesitos do A. aos seus benévolos leitores. Declara que com hipócritas não fala. — Quem há de levantar a primeira pedra? — Dous modos diferentes de acudir uma coisa ao pensamento.

No dia seguinte, mal rompia a manhã, um paisano que dizia trazer comunicações importantes para o comandante do posto avançado, foi conduzido à presença de Carlos e lhe entregou uma carta: era de Joaninha.

Fiel à sua promessa, ela não tinha dito nada do encontro da véspera: dizia a carta. E que a avó estava doente e aflita; que para a animar consolar, lhe dera notícias do primo, como vindas por pessoa que o vira e estivera com ele. Que ficava mais contente e sossegada: mas que aquele estado de ansiedade não podia prolongar-se. Que a saúde da pobre velha declinava de dia a dia; que se lhe ia a vida, que era matá-la não lhe dizer a verdade... Joaninha concluía com mil afetos e saudades e aprazava por fim o mesmo sítio da véspera para se tornarem a ver, e para concertarem o que haviam de fazer. Todas as precauções estavam tomadas, e o consentimento dado pelo comandante do posto contrário, para haver toda a segurança naquela entrevista.

Carlos tinha velado toda a noite; uma excitação extraordinária lhe amotinara o sangue, lhe desafinara os nervos. Bem tinha desejado vir para aquele posto, bem contava, bem esperava ele, estando ali, saber de mais perto de sua família, vê-los talvez, mais dia menos dia, encontrar-se com algum deles... e de todos eles, a inocente e graciosa criança com quem vivera como irmão desde os seus primeiros anos, era quem ele mais esperava, mais desejava ver decerto.

Mas uma criança era a que ele tinha deixado, uma criança a brincar, a colher as boninas, a correr atrás das borboletas do vale... uma criança que, sim, o amava ternamente, cuja suave imagem o não tinha deixado nunca em sua longa peregrinação, cuja saudade o acompanhara sempre, de quem se não esquecera um momento, nem nos mais alegres, nem nos mais ocupados, nem nos mais difíceis, nem nos mais perigosos da sua vida...

Mas era uma criança!... era a imagem de uma criança.

É certo, sim; e nas batalhas, em presença da morte... no longo cerco do Porto entre os flagelos da cólera e da fome, nas horas de mais viva esperança, no descoroçoamento dos mais tristes dias, a doce imagem de Joaninha, daquela Joaninha com quem ele andava ao colo, que levantava em seus ombros para ela chegar aos ninhos dos pássaros no verão, aos medronhos maduros no outono, que ele suspendia nos braços para passar no inverno os alagadiços do vale, — essa querida imagem não o abandonara nunca.

— Nunca!... nem quando as penas de amor, nem quando as suas glórias — mais esquecidiças ainda — pareciam absorver-lhe todos os sentidos e todo o sentimento do seu coração.

A saudade, a memória de Joaninha, suavemente impressa no mais puro e no mais santo da sua alma, resplandecia no meio de todas as sombras que lha obscurecessem, sobreluzia no meio de qualquer fogo que lhe alumiasse.

Uma luz quieta, límpida, serena como a tocha na mão do anjo que ajoelha em inocência e piedade diante do trono do Eterno!

Mas, no mesmo dia em que chegou ao vale, quase na mesma hora, cheio daquela luz mais viva e animada agora pela proximidade do foco donde saía... nessa mesma hora, ir encontrar ali, naquela solidão, entre aquelas árvores, à tíbia e sedutora claridade do crepúsculo... a quem, santo deus! Não já a mesma Joaninha de há três anos, não a mesma imagem que ele trazia, como a levara, no coração; mas uma gentil e airosa donzela, uma mulher feita e perfeita, e que nada perdera, contudo, da graça, do encanto, do suave e delicioso perfume da inocência infantil em que a deixara!

Não esperava, não estava preparado para a impressão que recebeu, foi uma surpresa, um choque, um reviramento confuso de todas as suas idéias e sentimentos.

Qual fosse porém a precisa e verdadeira impressão que recebeu, nem ele a si próprio a pudera explicar: era de um gênero novo, único, na a história de suas sensações: não a conhecia, estranhava-a e quase que tinha medo de a analisar.

Seria anúncio de amor?

Mas ele tinha amado, muito e deveras... e cuidava amar ainda, e devia amar; por quanto há sagrado e santo nos deveres do coração, era obrigado a amar ainda.

Ó obrigações de amor, obrigações de amor! se vós não sopis senão obrigações!...

Não o pensava Carlos, não cria ele assim: leal e sincero tinha entregue o seu coração à mulher que o amava, que tantas provas lhe dera de amor e devoção, que descansava em sua fé, que não existia senão para ele: mulher moça, bela, cheia de prendas e encantos, mulher de um espírito, de uma educação superior, que atravessara, desprezando-as, turbas de adoradores nobres, ricos, poderosos, para descer até ele, para se entregar ao foragido, pobre, estrangeiro, desprezado.

Quem era essa mulher?

Aonde, como obtivera ele a posse dessa jóia, desse talismã com o qual se tinha por tão seguro para não ver na graciosa prima senão?...

Senão o que?

A inocente criança que ali deixara?

Mas não é verdade isso: outra era a impressão que Joaninha lhe fizera, fosse ela qual fosse.

O que era então?

E sobretudo, quem era essoutra mulher que ele amava?

E amava-a ele ainda?

Amava.

E Joaninha?

Joaninha era... nem sei o que lhe era Joaninha... o que lhe estava sendo naquele momento.

O que lhe era fora, assaz to tenho explicado, leitor amigo e benévolo: o que ela será... Podes tu, leitor cândido e sincero — aos hipócritas não falo eu — podes tu dizer-me o que há de ser amanhã no teu coração a mulher que hoje somente achas bela, ou gentil, ou interessante?

Podes responder-me da parte que tomará amanhã na tua existência a imagem da donzela que hoje contemplas apenas com os olhos de artista e lhe estás notando, como em quadro gracioso, os finos contornos, a pureza das linhas, a expressão verdadeira e animada?

E quando vier, se vier, esse fatal dia de amanhã, responder-me-ás também da tua parte que ficará tendo em tua alma essa outra imagem que lá estava dantes e que, ao reflexo desta agora, daqui observo que vai empalidecendo, descorando... já lhe não vejo senão os lineamentos vagos... já é uma sombra do que foi... Ai! o que será ela amanhã?

Leitor amigo e benévolo, caro leitor meu indulgente, não acuses, não julgues à pressa o meu pobre Carlos; e lembra-te daquela pedra que o Filho de deus mandou levantar à primeira mão que se achasse inocente... A adúltera foi-se em paz, e ninguém a apedrejou.

Pois é verdade; Carlos tinha amado, amado muito, e amava ainda a mulher a quem prometera, a quem estava resolvido a guardar fé. E essa mulher era bela, nobre, rica, admirada, ocupava uma alta posição no mundo... e tudo lhe sacrificara e ele exilado, desconhecido.

E Carlos estava seguro que nenhuma mulher o havia de amar como ela, que os longos e ondados anéis de loiro cendrado, que os lânguidos olhos de gazela que o ar majestoso e altivo, que a fez duma alvura celeste, que o espírito, o talento, a delicadeza de Georgina... Chamava-se Georgina; e é tudo quanto por agora pode dizer-vos, ó curiosas leitoras, o discreto historiador deste mui verídico sucesso; não lhe pergunteis mais, por quem sois. Carlos estava seguro, dizia eu, que todas essas perfeições que o seu amor sem limites, que a sua confiança sem reserva, não podiam ter rival, nem haviam de ter.

Mas aquele beijo, aquele abraço de Joaninha... oh! que lhe tinha ele feito? Como o sentira ela? Como lhe guardara seu talismã o coração e a alma?...

Não, Carlos estava certo de si, certo do seu antigo amor, lembrado de quanto lhe devia: e nisso refletiu toda aquela noite que se fora em claro.

A imagem de Joaninha lá aparecia, de vez em quando, como um raio de luz transiente e mágica, no meio dessas outras visões do passado que a reflexão lhe acordava. Ai! essa era a reflexão que as acordava... aquela vinha espontânea; era repelida, e tornava, e tornava...

Há sua notável diferença nestes dois modos de acudir ao pensamento.

A manhã veio enfim; Carlos respirou o ar puro e vivo da madrugada, sentiu-se outro.

Quando chegou a carta de Joaninha, leu-a e refletiu nela sem sobressalto. Certo e seguro e si, resolveu ir ao prazo dado para a tarde.

XXIII
Continua a acudir muita coisa vaga e encontrada ao pensamento de Carlos —. — Dança de fadas e duendes. — Frei Dinis o fado-mau da família. — Veremos, é a grande resolução nas grandes dificuldades. — Carlos poeta romântico. —Olhos verdes. — Desafio a todos os poetas moyen-àge do nosso tempo.

Não há nada como tomar uma resolução.

Mas há de tomar-se e executar-se; aliás, se o caso é difícil e complicado, pouco a pouco as dúvidas surgidas começam a enlear-se outra vez, a enredar-se... a surgir outras novas, a apresentarem-se as faces ainda não vistas da questão... enfim, se o intervalo é largo, quando a resolução tomada chega a executar-se, a maior parte das vezes já não é por força de razão e de convicção que se faz, mas por capricho, ponto de honra, teima.

Carlos tinha resolvido ir ao prazo dado, no fim do dia. Mas o dia era longo, custou-lhe a passar. Todas as ponderações da noite lhe ocorreram ao pensamento, todas as imagens que lhe tinham flutuado no espírito se avivaram, se animaram, e lhe começaram a dançar na alma aquela dança de fadas e duendes que faz a delícia e o tormento destes sonhadores acordados que andam pelo mundo e a quem a douta faculdade chama nervosos; em estilo de romance sensíveis, na frase popular malucos.

Carlos era tudo isso; para que o hei de eu negar?

Entre aquelas imagens que assim lhe bailavam no pensamento, vinha uma agora... talvez a que ele via mais distinta entre todas, a da avó que tanto amara, em cujo maternal coração ele bem sabia que tinha a primeira, a maior parte... da avó que tão carinhosa mãe lhe tinha sido! Pobre velhinha, hoje decrépita e cega... Cega, coitada! Como e porque cegaria ela?

Havia aí mistério, que Joaninha indicara, mas que não explicou.

Atrás da paciência e humilhada figura daquela mulher de dores e desgraças, se erguia um vulto austero e duro, um homem armado da cabeça aos pés de ascética insensibilidade, um homem que parecia o fado-mau daquela velha, de toda a sua família... o cúmplice e o verdugo de um grande crime... um ser de mistério e de terror.

Era Frei Dinis aquele homem; homem que ele desejava, que ele cuidava detestar, mas por quem, no fundo da alma, lhe clamava urna voz mística e íntima, uma voz que lhe dizia: “Assim será tudo, mas tu não podes aborrecer esse homem”.

Sim, mas sobre Frei Dinis pesava uma acusação tremenda, que o fizera, a ele Carlos, abandonar a casa de seus pais! Acusação horrível que também compreendia a pobre velha, aquela avó que o adorava, e que ele, ainda criminosa como a supunha, não podia deixar de amar...

E destes medonhos segredos sabia Joaninha alguma coisa?

Esperava em Deus que não.

Desconfiaria alguma coisa?... O quê?

E iria ele poluir o pensamento, desflorar os ouvidos, corromper os lábios da inocente criança com o esclarecimento de tais horrores?

Havia de lhe falar na infâmia dos seus? Havia de lhe explicar o motivo por que fugira da casa paterna?

Havia de?...

Não.— Se Joaninha tivesse suspeitas, havia de destrui-las, antes; se ela soubesse alguma coisa, negar-lha.

Mentiria, juraria falso se fosse preciso.

E não havia de ir ver a avó, não havia de entrar na casa dos seus a consolar a infeliz que só vivia duma esperança, a de ver o filho de sua filha?

Não, nunca... O limiar daquela porta, que ele julgava contaminado, infame, manchado de sangue e cuspido de opróbrios e desonras, tinha-o passado sacudindo o pó de seus sapatos, prometendo a Deus e a sua honra de o não tornar a cruzar mais.

Mas que diria então ele a Joaninha? Como havia de explicar-lhe um proceder tão estranho, e aparentemente tão cruel, tão ingrato?

Por enquanto as impossibilidades materiais da guerra serviriam de desculpa, depois o tempo daria conselho.

Veremos! — é a grande resolução que se toma nas grandes dificul­dades da vida, sempre que é possível espaçá-las.

Carlos disse: Veremos!

Tomou todas as disposições para poder estar seguro e sossegado no sítio onde ia encontrar a prima: e o resto do dia, ansioso mas con­tente, ocupou-se de seus deveres militares, fatigou o corpo para descan­sar o espírito, e em parte e por bastantes horas o conseguiu.

Mas um dia de abril é imenso; interminável. E as últimas horas pareciam as mais compridas. Nunca houve horas tamanhas! Carlos já não tinha que inventar para fazer: pôs-se a pensar.

Que remédio!

Pensou nisto, pensou naquilo... uma idéia lhe vinha, outra se lhe ia. A imaginação, tanto tempo comprimida, tomava o freio nos dentes e corria à rédea solta pelo espaço...

Anéis dourados, tranças de ébano, faces de leite e rosas como de querubins, outras pálidas, transparentes, diáfanas como de princesas encantadas, olhos pretos, azuis, verdes... os de Joaninha enfim... todas estas feições, confusas e indistintas mas de estremada beleza todas, lhe passavam diante da vista, e todas o enfeitiçavam. O desgraçado...Por que não hei de eu dizer a verdade? — o desgraçado era poeta..

Inda assim! não me esconjurem já o rapaz... Poeta, entendamo­-nos; não é que fizesse versos: nessa não caiu ele nunca, mas tinha aquele fino sentimento de arte, aquele sexto sentido do belo, do ideal que só têm certas organizações privilegiadas de que se fazem os poetas e os artistas,

Eis aqui um fragmento de suas aspirações poéticas. Vejam as amáveis leitoras que não têm metro, nem rima — nem razão... Mas enfim versos não são.

"Olhos verdes!...

"Joaninha tem os olhos verdes.

"Não se reflete neles a pura luz do céu, como nos olhos azuis.

"Nem o fogo — e o fumo das paixões, como nos pretos.

"Mas o viço do prado, a frescura e animação do bosque a flutuação e a transparência do mar...

"Tudo está naqueles olhos verdes.

"Joaninha, por que tens tu os olhos verdes?

"Nos olhos azuis de Georgina arde, em sereno e modesto brilho, a luz tranqüila de um amor provado. seguro, que deu quanto havia de dar, quanto tinha que dar.

"Os olhos azuis de Georgina não dizem senão uma só frase de amor, sempre a mesma e sempre bela: Amo-te, sou tua!

"Nos olhos negros e inquietos de Soledade nunca li mais que estas palavras: Amo-me, que és meu!

"Os olhos de Joaninha são um livro imenso, escrito em caracteres móveis, cujas combinações infinitas excedem a minha compreensão.

"Que querem dizer os teus olhos, Joaninha?

"Que língua falam eles?

"Oh! para que tens tu os olhos verdes, Joaninha?

"A açucena e o jasmim são brancos, a rosa vermelha, o alecrim azul...

"Roxa é a violeta, e o junquilho cor de ouro.

"Mas todas as cores da natureza vêm de uma só, o verde.

"No verde está a origem e o primeiro tipo de toda a beleza.

"As outras cores são parte dela; no verde esta o todo, a unidade da formosura criada.

"Os olhos do primeiro homem deviam ser verdes.

"O céu é azul...

"A noite é negra...

"A terra e o mar são verdes...

"A noite é negra mas bela, e os teus olhos, Soledade, eram negros e belos como a noite.

"Nas trevas da noite luzem as estrelas que são tão lindas... mas no fim de uma longa noite quem não suspira pelo dia?

"E que se vão... oh que se vão enfim as estrelas!...

"Vem o dia.. — o céu é azul e formoso: mas a vista fatiga-se de olhar para ele.

"Oh! o céu é azul como os teus olhos, Georgina...

"Mas a terra é verde: e a vista repousa-se nela, e não se cansa na variedade infinita de seus matizes tão suaves.

"O mar é verde e flutuante... Mas oh! esse é triste como a terra é alegre.

"A vida compõe-se de alegrias e tristezas...

"O verde é triste e alegre como as felicidades da vida!

"Joaninha, Joaninha, por que tens tu os olhos verdes?

Já se vê que o nosso doutor de bivaque, o soldado que lhe cha­mou maluco ao pensador de tais extravagâncias, tinha razão e sabia o que dizia.

Infelizmente não se formulavam em palavras estes pensamentos poéticos tão sublimes. Por um processo milagroso de fotografia mental, apenas se pôde obter o fragmento que deixo transcrito.

Que honra e glória para a escola romântica se pudéssemos ter a coleção completa!

Fazia-lhe um prefácio incisivo, palpitante, britante...

Punha-se-lhe um título vaporoso, fosforescente... por exemplo: — Ecos surdos do coração — ou Reflexos d'alma — ou — Hinos invisíveis — ou — Pesadelos poéticos — ou qualquer outro deste gênero, que se não soubesse bem o que era, nem tivesse senso comum.

E que viesse cá algum menestrel de fraque e chapéu redondo, al­gum trovador renascença de colete à Joinvilie, lutar com o meu Carlos em pontos de romantismo vago, descabelado, vaporoso e nebuloso!

Se algum deles era capaz de escrever com menos lógica, — (com menos gramática, sim) e com mais triunfante desprezo das absurdas e escravizantes regras dessa pateta dessa escola clássica que não produziu nunca senão Homero e Virgílio, Sófocles e Horácio, Camões e o Tasso, Corneille e Racine, Pope e Moliére. e mais algumas dúzias de outros nomes tão obscuros como estes?

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